DA MANEIRA
MAIS SIMPLES, OUTROS RITMOS, OUTROS MODOS
Tomar as
coisas simples, sem retirá-las de seu estado de simplicidade; torná-las nas
mais complexas, sem torná-las incompreensíveis. Duas tarefas da boa poesia.
Mede-se a capacidade do poeta pela maneira como torna o significado em
significante. O tecido do poema deve ser feito com riqueza de densidade, ao
ponto de servir a forças externas variadas. Quanto maior sua elasticidade maior
a durabilidade do poema. E, claro, se o literário se mede pela longevidade,
mais próximo de ser voz singular entre vozes singulares. O poema é um objeto
fabricado para mover-se. Quando não, está fadado à ferrugem indelével do tempo.
Reparar a
complexidade do simples não é às vezes o mais difícil dos exercícios e por isso
tanta matéria se acumula no porão do esquecimento. O que envolve esse
procedimento é que a poesia se faz da mais autêntica das características da
literatura. Todo poema é revelação. Há nesta palavra duas condições
dicotômicas, compreendendo por isso não o viés comum – e, um dia, perceberão,
deturpado – de distinção opositiva. O dicotômico se constitui na inter-relação
entre duas faces de um mesmo objeto. Ou seja, o que aqui se nega não é sua
distinção e sim a determinação da incomunicabilidade entre uma e outra face
como se se tratasse de unidades isoladas e incomuns.
Assim, em revelação,
do latim revelatio, se conjugam dois termos, re, indicando oposição, e, velare,
cobrir, tapar; velare, de velum, véu. Velar, logo, cobrir com véu, esconder; e revelar,
retirar o véu, mostrar. Os dois sentidos se ocultam na palavra revelação. O ato
de se mostrar não traz nunca uma imagem pura do que se mostra. Assim, o que se
vê na revelação é apenas o entrevisto; o que num primeiro instante constitui
uma certeza sobre o que se mostra, mas logo é tornada em dúvida. Toda revelação
pressupõe um ocultamento. Daí o descompromisso do literário com esse ideal
fabulado pela razão sobre uma verdade absoluta das coisas. Não há discurso fora
da ideologia. E toda literatura é também, para contrapor outra das ilusões que
foram buscadas para validar o valor prático do exercício estético com a
linguagem, ideológica.
Em matéria
de poesia, revelação preenche, dentre as várias linhas de sentido acumuladas pelos
usos do termo e aqui retomada para o melhor esclarecimento das conjeturas
etimológicas apresentadas, aquele viés de raiz teológica. Revelar é fazer
conhecer o que se oculta dos olhos comuns. Novamente, não repousa a ideia de
abertura permanente do que se encobre, em que seja possível nele permanecer. O
que se mostra se mostra através de um lampejo, uma iluminação capaz de
favorecer os sentidos a reparar sobre a face que se oculta. Nenhum profeta – e
ao que parece nem mesmo Adão e Eva – viram a face de Deus. Todas suas aparições
se resumem a sinais: um sopro que repousa no vazio absoluto, uma voz ou uma chama
que se desprende do céu ou do nada.
Todo poema,
porque criação, imita a Deus; não há heresia na afirmação uma vez que não se
permite sobre ela uma simplista conotação religiosa. Sagrada, sim; religiosa
não. O poema é material de manifestação do sagrado, em todas as suas dimensões,
porque objeto dourado e batido na forja por um ente capaz de perceber Deus nos
seus sinais. Na ruptura com as linhas determinantes que julga uns em detrimento
de outros, o sagrado da poesia pressupõe a face oculta pelo dogma; a poesia
contém, no sentido de contemplar, o que se designa profano. É nele onde reside
a força sacra mais honesta. O homem é corpo, pulsão e desejo – as três
dimensões que o tornam herdade de um milagre.
Dentro desta
linha, a poética de Eugénio de Andrade é significativa; nela se inaugura, algo
comum a toda obra significativa do gênero, um universo particular cujo
interesse é favorecer uma revelação do mundo, desde sua forma mais simples à
mais complexa, aquela capaz de não ser justificada pela mera força antagônica
com que fomos levados a forjar o mundo. Embora pareça que cada poema seu é
gerado de eventos individuais que subitamente tornam à vista do poeta – e são –
essas peças constituem um todo vibrátil; é um corpo que se mostra em variações,
ora ele próprio, ora – e em grande parte – metamorfoseado em ilações favoráveis
ao encontro de uma dimensão que julgávamos perdida, mas que ao tato do poeta
foi apenas propositalmente velada pelos estratagemas da técnica, persistentes
estes na negação da poesia enquanto mobilis de todas as coisas.
Essa
dimensão recorre a um tempo primitivo quando todas as coisas, apesar de conter
sua forma-em-si, não eram colocadas umas em oposições a outras. Tanto que na
poesia de Eugénio de Andrade seu gesto sagrado é o da comunhão
corpo-mundo-corpo; mantém-se um reino da inseparabilidade opositiva. Esta só se
mostra em aparência porque objeto feito de palavras, não-possibilidade de
realização plena dessa totalidade. Nessa composição, o poema é sutura de
elementos que figuram ao alcance do poeta; esses elementos por vezes se revelam
como são, outras, logo transmutados numa forma que mantém estreiteza nas suas
nervuras constitutivas.
Nada,
entretanto, é inocente nesta poesia e por isso que os inocentes, no trabalho e
retrabalho das sugestões comuns para o que nela acreditam se revelar, sempre
estarão condenados a apenas planar sobre a superfície do poema. Quantas imagens
marcadas pela ordem opositiva das coisas ilustram a poesia de Eugénio de
Andrade? Nenhuma. Mas os olhos que não desconfiam do que veem ou que apenas não
estão de espírito livre para acessar as imagens outras que esta poesia nos
sugere permanecem nos modelos triviais. Nada mal para o poeta. Ele conseguiu
realizar-se em sua plenitude. Se recordamos o que dizíamos sobre o termo revelação
entenderemos.
É preciso o
olho de soslaio, incomum, o corpo febril e sedento, o espírito livre dos dogmas
para se aperceber do que se nos mostra no poema. Todo poema só se realiza se
formos capazes da construção de um olhar desautomatizado da repetição simplista
da técnica e capaz de nos restaurar o contato aberto com o mundo e as coisas,
como se pudéssemos cumprir um retorno ao nosso tempo primitivo. Caso contrário,
o que teremos é apenas uma acumulação de palavras dispostas em relação ou não
entre si. Ou seja, o simples não é o que aparenta. Nem a poesia do simples.
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