NOTA QUASE INÚTIL




Escrever sobre Herberto Helder é um crime. Ler também, não nos enganemos. Qualquer desaviso em relação ao poeta é um convite ao conhecimento de si e do mundo pelas vias obscuras, pela mão errada de um criminoso com sua única graça, o crime, empunhando a Bic preta — a mais inocente das armas. Imperdoáveis, o amor e a palavra são as condições para abrir o caso.

Em julho de 2018 poderia ser comemorado o lançamento de Apresentação do Rosto (Ulisseia, 1968), um dos livros mais polêmicos de Herberto Helder e que já quase não existe à mão. O condicional é aplicado não fosse o livro um advento tumultuoso na trajetória literária de um dos maiores escritores portugueses do nosso tempo: o romance autobiográfico ou a autobiografia romanceada foi alvo de censura pela Polícia Política dias após a impressão de seus 1.500 exemplares. Quase todo o material foi incinerado assim que apreendido pelo P.I.D.E. A pequena parcela que escapou à destruição se encontra em alguns pontos específicos do mundo, seja em bibliotecas de universidades, entre as raridades de alfarrabistas exigentes ou então nos cofres de seletos estudiosos de Herberto Helder. Cinquenta anos de um livro renegado pelo próprio Autor — aqui em maiúscula — é lembrado por ser o reduto primeiro de diversos textos remanejados ou reescritos para outros títulos como Photomaton & Vox, Vocação Animal e Os Passos em Volta. O que foi o foram os relances potencialmente ligados ao seu passado propriamente civil, como se fosse a página o confessionário, a casa da infância que deveria ficar em total escuridão. 

Abrir esta 7faces lembrando de uma das mais indefiníveis publicações da literatura portuguesa, assinadas por um poeta como Herberto Helder, é tão arriscado quanto cometer a montagem de uma edição especial sobre Herberto Helder. Deve-se responder pela tentativa de reunir alguns dos principais nomes que falam sobre esse nome, como se um crime estivesse sendo premeditado.

Assim como a poesia é esse ato ilícito para atingir o coração da existência, uma revista é a prova de que não se ocultam esforços para convidar à roda os passos de novos e mais leitores. É uma tentativa. Os poetas e seus respectivos crimes, cuidadosamente escolhidos, também se voltam ao Autor — sempre em maiúscula — e, de uma forma ou de outra, também homenageiam o rosto e testemunham o seu processo de ocultação na própria obra. É no poema que o poeta respira. É na poesia que o poeta morre, e é assim que se vive para sempre. 

Escrever sobre Herberto Helder é um crime e toda a sua dificuldade. Inafiançável, como a sua escrita. E essa a condição de sua grandeza. Porque o êxito da poesia está, como o próprio Helder afirma diante dos poemas de António José Forte, “em torná-la activa e frutuosamente manifesta”. Lida e relida, com cuidado ou à exaustão, é a prova de que a vida de um poeta compensa. E também a morte, sem mestre.

Agradeço, e não pouco, pela confiança do editor Pedro Fernandes e pela pronta resposta dos convidados para participar de um documento voltado às mais variadas faces da obra de Herberto Helder, seja no ensaio, nos versos ou mesmo nas artes visuais. Para construir mais um ponto de leitura do silêncio — mais um lugar de paixão. 

Enquanto isso, Herberto Helder segue sendo o crime que não prescreve. 


Leonardo Chioda
Coorganizador

Veneza, maio de 2018


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