O POETA DE MÃOS VAZIAS
Não é poeta aquele que não tem seus pares; e os pares hão de
ser, inevitavelmente, aqueles que mais lhe oprime pela angústia de não
alcançá-los. Aqueles que singularmente produziram uma revolução só comparada à
força destrutiva de uma grande fúria natural. Que os pares são deuses e estão
para ser destronados tão logo o aspirante poeta consiga perceber em sua
estrutura uma pequena infiltração pela qual possam se por e reiniciar em
silêncio, no rumorejar lento da tessitura do verso, aquela grande fúria de
outros tempos.
Também não é poeta quem desafina com o real a fazê-lo
figuração própria para o poema. O poeta há ter lucidez suficiente para ver que
o que está à sua volta não pode ser visível pelo olho comum, que esse mundo é
cada vez mais mundo de aparência, e o poeta que só aparenta não é digno da
confiança alheia. Não é suficiente para ele dedicar-se ao trabalho de
perscrutar detalhadamente os movimentos da existência. A cópia fiel é uma
tentativa fracassada. O verso há que erguer novas possibilidades de existir,
como um caudaloso e perene rio universal a invadir e deslizar por entre o magma
sufocador que irriga o mundo contemporâneo.
A busca incessante do poeta deve ser a de se reaproximar do
estágio genesíaco da poesia, quando espírito e homem comungavam reciprocidades.
Mas há que cuidar para ainda que involuntariamente não voltar a torre de marfim
de onde já lhe custou descer. Novamente aporta aqui a necessidade de ser
limiar. Esse retorno a unidade perdida é talvez o gesto de maior valor da
poesia. É por ele que somos reeducados a ver num mundo em que estivemos
limitados pelas vendas das ideologias; é por ele que o poema resiste e é cada
vez mais matéria necessária a refiguração do ser, situado que estamos num mundo
cuja existência foi subvertida a ponto de ser transformada em coisas entre
coisas.
No caso de Lúcio Cardoso é possível admitir pela extensa vivência
com palavra o caráter do poeta contemporâneo, ainda que ele esteja em igualdade
com muitos nomes de seu tempo dito modernista. Encontramos o autor a se
debruçar entre a prosa – o lugar textual com o qual primeiro obtivemos contato
– para somente depois compreendê-lo como ser de poesia; esse depois apenas se
restringe à produção do poema, que veio depois da prosa, mas ultrapassa todo
lugar anterior não apenas quanto ao número de textos do gênero (são
aproximadamente 547 poemas), mas porque a melhor parte daquele primeiro lugar é
também invadida sem nenhuma licença poética por esta. Produto, certamente, de
sua tentativa formal e que o distingue entre os vários nomes da cena
contemporânea: Lúcio foi, com Clarice Lispector, um dos precursores no Brasil
do romance de fluxo de consciência.
No caso aqui – na poesia – não há espaço para o
experimentalismo gratuito a ponto de por em risco as potencialidades do gênero.
Lúcio, o poeta, buscou revestir o poema da natureza mais humilde da palavra sem
fazê-lo num dizer pobre ou num dizer
situado no mais alto alcance do homem erudito. A erudição do poeta é uso de
uma dicção capaz de reinventar sem que a reinvenção esteja exposta como um
destaque visto propositalmente ao olho nu ou visto ainda naquela fronteira onde
só os docilizados pela matéria da erudição fabricada estão suscetíveis de
alcançar. Porque poeta, de fato, é quem ultrapassa o comum e o usual com a
mesma força que do comum e do usual, não quem se propõe a uma farsa barata com
a linguagem. O poeta é que de mãos vazias arranca novas possibilidades de
dizer.
Pedro Fernandes
Pedro Fernandes
editor