
“A POESIA
QUE RESIDE NAS COISAS”
Há muito,
os objetos
criaram
Um som macio
de existência,
E a vida
mudou-se sujocada
Para a face
inerte, das coisas.
O mundo
vestiu a capa grosseira
dos jatos cotidianos
e chamou para a sombra,
tudo o que
pudesse perturbar na luz,
a vista
enfraquecida nas longas meditações.
Por isso,
ninguém viu nada....
Mário
Peixoto, trecho de “A poesia reside nas coisas”. Poemas de permeio com o mar
Podemos pensar
que este trecho de poesia resumiria todo sentido do imenso reservatório poético
e imagético de Mario Peixoto. O centro de tudo isso se encontraria na
autoconsciência, desde a juventude, de um mundo originário ligado a um
corpo-vibrátil sem órgãos e desterritorializado da infância. Este que incluiria
um pensamento reflexo capaz de captar e expressar no intervalo de um instante
sublime, uma infinita riqueza de energia na singularidade de texturas e cores
das coisas ao redor em oposição àquele perceptivo funcional e inerte do
cotidiano e das identidades subjacentes. Essa consciência de um corpo vibrátil
se espalharia então por todos os meios expressivos que Mário utilizou, do
cinema à literatura. Se há uma
poesia da existência, do familiar ou do inefável do limite humano, ela se
encontraria precisamente na dimensão tanto do absoluto da natureza em relação
ao homem como na dimensão do corpo e das coisas imediatamente postas ao redor e
que são necessariamente percebidas pelo olhar. Olhos e imaginação trabalhando
sempre juntos segundo o próprio Mário, influenciado por um cinema mudo
contaminado pelas vanguardas e pelo engajamento vinculado a um amplo contexto ideológico
estetizante da arte moderna, que substituiu a tradição clássica e as convenções
por uma nova ordem do mundo vinculada ao visível, na autonomia das descobertas
da experimentação do olhar sobre as texturas na luz, como disse Louis Delluc, A
poesia é portanto verdadeira e existe tão realmente quanto o olho. Mas Mário
radicaliza essa experimentação estética em Limite no andamento fluido de sua
“atenção” sobre as mãos iniciais, na textura do rosto da mulher do prólogo, do
barco e do remo pictóricos na imagem, dos cabelos da mulher ou dos homens no
cemitério, na textura sombreada do barco, nas guelras se entreabrindo do peixe
na praia e nos movimentos livres da câmera no telhado, na estrada ou no
bebedouro, nos movimentos da máquina de costura e no trem, desobstruindo-os do
apenas simbólico ou de sua funcionalidade no encadeamento da narrativa fílmica
para simplesmente acontecer poeticamente na imagem e no som entrelaçados,
valendo-se principalmente de sua opacidade de coisa. Portanto será das coisas
que nascerá uma poética do sublime, portanto moderna. E é dessa poética das
coisas na imagem que nascerá uma narrativa sonora de imagens fluida e
indeterminada. Essa poética se tornará um espelho fenomenológico dessa poesia
que reside nas coisas na medida em que o próprio desencadear da narrativa
geraria no fim de Limite uma poética do entrelaçamento na cena das mãos do
homem morto formando, segundo o próprio Mário, uma contextura com o chão. O
corpo como coisa entre as coisas. O entrelaçamento. A carne. O quiasma. Anos
depois, já no início da grande literatura de O inútil de cada um, apareceria um
pensamento amadurecido explicitando a poética de uma busca pelo sublime no ato
reflexo do pensamento sobre si perceptivo e da suspensão do agora eternizado
pela consciência do instante que recai sobre a percepção do tempo e das coisas
ao redor espalhadas no chão e descritas no passeio na praia, extensão poética
das pegadas do casal em Limite. O corpo será, então, o grande operador dessa
poética. Poética de um pensamento espelhado que recai sobre si mesmo, sobre
esse mesmo estar no mundo corpóreo e sua relação silenciosa com as coisas que
tecem um universo de existência algo lisérgico nas texturas moventes ao som das
trilhas de Debussy, Satie e Ravel e que de alguma forma prenunciariam algo como
uma ponte longínqua do que viria a ser conhecida muito tempo depois como a nova
dicção da valorização do corpo na contracultura, no comportamento hippie,
expressa na literatura pop tropicalista em José Agrippino de Paula, nas artes
plásticas, operada pelo ideologema fenomenológico do neoconcretismo, na
performance e no cinema experimental dos anos 1970, principalmente no
superoitismo de Céu sobre água, do mesmo Agrippino. Poderíamos então, quem
sabe, pensar na constituição de um determinado veio estético brasileiro imbuído
de um sensível corpóreo e que a partir desses regimes poéticos e de imagens
diferenciados pudessem ser pensados a partir de um hipotético entrecruzamento
no espaço e no tempo.
Geraldo Blay
Roizman
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