SOBREVIDA PELA PALAVRA

A vida são instantes. E os instantes são vãos. Só a palavra é sobrevida. Mesmo se esquecida, fatalidade da qual talvez o único ileso seja o tempo; silenciada, destino dado àqueles para quem a palavra é mero exercício pragmático ou quem é calado pelo poder.

A palavra é ainda nossa única eternidade. Foi, na impossibilidade de precisar o eterno, a cápsula que trouxe vivos quem nunca conhecemos. E revelará para o futuro quem fomos. A eternidade é um reverberar contínuo de palavras. Não à toa, a palavra foi tornada objeto de culto. Quem é deus, se não uma palavra? E a existência, se não o que se nomeia? A palavra é o princípio, o meio e o fim.

A compreensão da palavra como criadora do visível, finito, e do invisível, infinito, é a raiz da poesia. Há no poeta a contínua tarefa de refundação do mundo. Ora pela distensão da palavra em uso, ora pela renovação da língua pela palavra nova. No primeiro caso é, mesmo que recriação, criação, uma vez não ser o ato recriativo uma ressurreição. A ressurreição não é o nascimento do mesmo. Tudo só vive uma vez. Exceto a palavra, que se renasce e alcança os opostos noutras vidas.

Assim, quando acusam o poeta de sua poesia se refugiar no trivial é, por vezes, contra a possibilidade criativa – e o logo o ser da poesia – que se colocam. Porque não é a trivialidade aquilo que permanece no poema mas sua expansão. O que se expressa. E isso precisou que o poeta alcançasse outra compreensão sobre a efemeridade a fim de percebê-la como possibilidade poética. Ao mesmo tempo, esta não é uma percepção fortuita. Nem totalmente nova – coisa do acaso. Nem gratuita, levada em causa pelo império do trivial e do efêmero, expandido da aurora da modernidade ao contemporâneo. É a reafirmação do que sempre se percebeu enquanto força, pulso da natureza. Que o material da poesia é a existência. Se assim, a poesia está em toda parte. E o poeta é o demiurgo. 

Por exemplo, o ponto no qual se insere Ana Cristina Cesar, o dos poetas que lidam com o uso coloquial da linguagem e se apropriam na sua obra de palavras corriqueiras, dos seus usos pragmáticos, do seu cotidiano – afirmativa que, se se adéqua ao estatuto do efêmero aqui em destaque, se distancia o suficiente, no limite de ser chamado de contradição, se lembrarmos que esses poemas podem, agora distantes desses usos e do cotidiano da linguagem, constituir o sentido sempiterno esperado da poesia. Historicamente é inegável o distanciamento do presente tomado como feitura do poema. Mas, o caso percebido então, é que, tomado pelo poema, qualquer efemeridade é logo tornada distância. 

O trabalho de preocupação pela desvinculação do datado – daquilo que o próprio Carlos Drummond de Andrade, um dos nomes pertencentes daquele eixo central do modernismo e situado entre os revolucionários do gesto poético na literatura brasileira, isto é, base para o que tem sido trabalhado pelos poetas de depois – não é uma tarefa atribuída ao leitor mas ao poeta; convencionalmente, são raros os leitores presos à necessidade de vincular o conteúdo do poema a determinado contexto. E essa proximidade é só ilusão para o poeta. Para o leitor, pura miragem. Aos leitores mais acurados nunca lhe restará outra alternativa se não a de, no trato de deslindamento do poema, oferecer a mais diversa sorte de possibilidades de leitura a fim de demonstrar o trabalho de significação construído, direta ou indiretamente, pelo poeta. Isso significa dizer que, a depender da maneira como se verifica o contexto pela obra poética, retomá-lo não é atribuir-lhe uma força atrasada e sem valia para o leitor contemporâneo, tampouco atualizá-la, mas tratá-la como um enriquecimento no processo de leitura do poema. O poema é rio de linguagem e arrasta sedimentos do tempo. Em passagem, esses sedimentos são o mesmo-outros. Ler poesia vestida de efemeridades é encontrar a pele deixada pela palavra no passado e como se recria depois. Um mover-se sempre em distensão.

A efemeridade que une Ana C. aos poetas de seu tempo e depois dele assume-se como uma frente de significação diversa: se manifesta ora na estrutura e forma do poema, quando encontramos a força epifânica do verso curto, a estrofe breve ou poema-pílula e a linguagem quase sempre despida do trabalho de garimpo, a anotação do que lhe vem num instante de epifania; ora no tema, nas situações evocadas que se referem ao dia comum, do que vê e vivencia o eu-poeta; ou na maneira como o poema é apreciado pelo leitor. Isto é, não estamos ante qualquer força que lhe implique uma necessária reflexão porque o efêmero, o epifânico, é revelação e não inspiração. O poema é instante.

É por isso que o renascimento, por assim dizer, da sua obra encontra terreno muito fértil na atualidade. Porque, do tempo dela para o nosso, o efêmero é cada vez um modus vivendi; já não é a da atitude de reflexão contemplativa. Estamos definitivamente na era dos insight – naquilo que, se para o bem ou para mal ainda não sabemos, tem se assumido na poesia com grande força expressiva, ainda que o poema-trocadilho e o poema-piada, por exemplo, signos da aurora desse tempo, sejam uma alternativa cada vez mais previsível e logo um fenômeno cansado, que serviu a um tempo mas agora talvez devêssemos usar essa força para galgar outras expressões poéticas; de toda maneira, as novas gerações têm em poéticas como a de Ana o impulso para se reinventarem. Herdeiros na poesia são aqueles capazes de subverter o que seus antepassados disseram e fizeram. O trabalho de poetas como Ana C. foi sempre o de desconstruir descontraidamente a sisudez da poesia e de quem faz o verso.

Isso responde perfeitamente as acusações de que a poesia de poetas como Ana Cristina sobrevivem mais ao culto do poeta torturado, atormentado e suicida. A poesia dessa poeta encontra fôlego dentro e fora de seu tempo. É catapulta para o futuro. Prevalece a sobrevida da palavra que, por sua vez, é a sobrevida do poeta. Não o contrário como os detratores costumam pensar.


Pedro Fernandes
editor

Para ler e-ou baixar a edição clique aqui.

7faces. Ano VII, 13 edição, jan.-jul. 2016

(clique sobre a imagem para ampliar)

Organização
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Cesar Kiraly

Capa
Billy and Hells

Projeto gráfico, editoração eletrônica e diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
248

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
Lau Siqueira, Jørge Pereira, Fernanda Fatureto, Douglas Siqueira, Laís Araruna de Aquino, Anna Barton, Salvador Scarpelli, Leandro Rodrigues, Lúcio Carvalho, Karin Krogh, Jeovane de Oliveira Cazer, Cristiane Grando, João Pedro S. Liossi, Luís Otávio Hott, Ricardo Abdala, Nivaldete Ferreira, Carlos Barata, Laís Ferreira Oliveira e Fernanda Pacheco.

Para baixar o PDF clique aqui.





“O poeta inventa viagem, retorno, e sofre de saudade”
Hilda Hilst

Entre os nomes ousaram intervir com os chamados temas pouco poéticos – e por isso as observações desenvolvidas até aqui – está o de Hilda Hilst; talvez por essa razão e porque não se interessou pactuar com determinados grupos do Olimpo (leiam a expressão com a máxima de ironia possível), a poeta também está no rol daqueles cuja obra melhor ficaria se caída no esquecimento. Contra essa última imposição podemos pensar na saída construída por ela: passar-se pelo que não era (ou será que era?) a fim de enquanto se desfazia da voz comum que rebaixava seu trabalho se mostrava igualmente como as outras já ingressadas por toda sorte de subterfúgios ao panteão dos sacrossantos. Essa posição é arriscada e não serve aos fracos, aos que se encantam pelo bruxulear da fama do bem-aceito e esquecem do lugar devido do poeta – o não-lugar. Hilda fez-se em trânsito e construiu aberturas para ruir com o interesse escuso da crítica conveniente e conivente que zelou por jogá-la no limbo.

O poeta é e não é homem do seu tempo. Sabe de quais materiais molda seu universo. É porque não é possível se desfazer das obsessões que lhe tomam no momento de composição; não é porque, mesmo expondo às claras os motivos do seu tempo, estes não são sorvidos à sua maneira pelos leitores imediatos. Isso justifica a perenidade de determinadas obras; justifica o caso de redescoberta da poesia de Hilda Hilst. É o processo de contínua leitura motivado em parte pela exposição escusa da crítica de seu tempo quando não o silêncio em torno da sua obra – silêncio lido pela poeta como o pior dos castigos da musa contra o trabalho do poeta, silêncio que sempre foi preenchido pelas banalidades produzidas por outros poetas – que faz finalmente sua obra alçar outra dimensão da sua obra na e para a literatura recente.

Não se trata isso de reconciliação do centro com os das margens – porque além dessas duas dimensões possuir suas limitações, sobretudo a segunda, a releitura de uma obra nem sempre é feita com o interesse de corrigir a visão deturpada de um tempo. É porque finalmente é feita uma leitura coerente e não sentencial de sua obra. Nesse momento parece que sempre ouviremos ela nos dizer, “fico besta quando me entendem”. E, afinal, pode nem ser entendimento somente; é que obedecendo certa posição repetível entre os grandes, Hilda esteve em contato com as vozes de um tempo porvir, ainda que este tempo de hoje ora pareça tão mais retrógrado, corrompido, coberto por uma espessa camada de fumo com elementos do pior da civilização. E esta não é uma posição pessimista; é somente uma constatação do próprio malgrado humano lido pela poeta em “Poemas aos homens de nosso tempo”.

Da extensa e multifacetada obra de Hilda Hilst, a poesia, tal como sua prosa, esteve interessada em expor, dentre outras questões ou temas, os conflitos centrais entre sujeito mundo e os discursos sempre apresentados como acabados ou não-sensíveis ao campo do poeta; tal posição está em consonância com o que se esperava da obra de um poeta do seu tempo, mas, tudo se filia a uma condição marcadamente única só possível de ser realizada através de uma escrita interessada no trabalho não de permanência mas de desestabilização das trivialidades. Devemos a Hilda sua perspicácia e inteligência em afastar-se da mesmidade dos temas no interesse de uma obra autossuficiente; que fez da contradição e dos rigores estabelecidos dos discursos matéria vital para sua poesia – coragem dispensada em muitos poetas e utilizada com o vigor necessário na construção de uma obra desde sempre igualmente necessária.

Para ler ou baixar a edição clique aqui.






























"Quando já abandonamos a crença em um Deus, a poesia é a essência que ocupa seu lugar como redenção da vida"
Wallace Stevens


Muito já se escreveu sobre o caráter valorativo da poesia. Sobre o seu papel nesse mundo tresloucado. Mas, todos parecem concordar, entretanto, que esse valor e esse papel da poesia não são instituídos por padrões fixos e são, portanto, imensuráveis e reduzidos a si próprios. A questão não se finda aí, no entanto. E por isso entro para o rol dos que voltam a ela só para, mais uma vez, dizer que esse fim em si da poesia está para além do seu próprio estatuto. E que esse fim desempenha um movimento para além das fronteiras do signo poético e sua dimensão é ampla o suficiente para entender a poesia com materialidade constituinte da ordem real do mundo empírico; muito embora o mundo empírico a rejeite, a poesia faz-se força corrente, escorrega sorrateira por entre suas fendas e aí se instala sendo capaz de reinventar a ordem das coisas. E isso não tem nada a ver com uma pedagogização gratuita do mundo, um amolecimento da dureza da racionalidade ou como quer ainda os mais puritanos, um florear do real. Sobre isso já tenho dito que estamos longe no território da poesia. Ela tornou-se materialidade inquieta e inquieta o suficiente para ser aquela que aponta com o mesmo dedo em riste do romance, por exemplo, o caos do mundo.

Sobre o caos do mundo a poesia ocupa a dimensão não de estatuinte de uma ordem, mas de sua problematização. Se antes o mundo parecia um sistema muito bem elaborado, com proa conduzida pela figura de um navegante superior que detinha as coordenadas e dizia – sem dar as caras – qual seu papel na cabine da condução; se antes o sistema bem elaborado se guiava por regras próprias às quais o homem, reles mortal, não tinha acesso; hoje o movimento é avesso disso tudo: olhamos para os mais de não-sei-quantos anos-luz desse mar de estrelas e percebemo-nos sem capitão; o sistema, até que possui regras próprias e está mais ou menos bem estruturado, mas noutra ponta, a certeza de não termos capitão e de sermos agora criador-e-criatura, deu ao mundo uma destituição de sua cartografia e ao homem a vontade real de ser imortal. A poesia entra aí como unidade maleável no processo de reconhecimento do mundo-em-si, do homem-pelo-homem, do homem-deus. Isso parece ser suficiente para ver na poesia como espaço de redenção do homem perante sua existência e, consequentemente, da vida perante a vida. Nesse processo, instaura-se ainda o caráter de resistência da poesia.

O sopro da nomeação – instituído na criação do mundo ao Adão – é um sopro poético. Reconhecer a natureza com tudo o que ela tem, fundamento da linguagem, instituição do mundo, por extensão fundamento da poesia. Se ela se desvinculou do movimento sagrado e desceu das torres de marfim, porque os deuses todos estão mortos, a poesia, logo, ocupa o extenso vazio por eles deixado e firma-se como sentido das coisas e do mundo. Não deixa de ser posta sob pelos-ares como representação vazia ou inutilidade verbal, isso pelo modo como o rumo da construção do sistema que rege a redoma social tem sido pensado, articulado e construído, ao longo de vários séculos de dominação e exploração. Contemporaneamente, a espetacularização, o consumismo, a massificação, a coisificação do homem, a nulidade da vida e o desenvolvimento de uma teia crescente que suga e deglute a todos e nos ameaça (e muito tem nos transformado) em escravos cativos, mentes obsedadas, esquemas a serviço de, eis que a poesia resiste. Resiste no ato de reincorporação do corpora semântico, de refacção dos esquemas verbivocovisuais, da reformulação de sua própria consciência de ser-poético e firma-se como contra-corrente para destituir a hostilidade, o absurdo, a falta de lucidez. Firma-se como um grito, um perfil esguio, esquivo, revolto, retorcido, alimentando-se não somente de si – sua substância vital – mas deglutindo, antropofagicamente, a indigência, o avesso, o retrocesso. Fecha-se para si, fala de si-para-si, mas expõe a nu os movimentos de obliteração que a reduziram em fantasmagoria. Mas sobrevive. E sobrevive.

Aqui se inscreve a poesia de Marize Castro. Não quero reduzi-la ao tom feminino a que a crítica comumente tem-na associado e o fundo sobre o qual a poeta tem se movido ostensivamente. Mas quero entender Marize Castro no epicentro de um movimento escritural que se firma como sujeito-ator no processo de reconstituição simbólica do mundo pela palavra – signo feminino, mas largamente cultivado por uma colônia patriarcal. A poeta de Marrons crepons marfins estabelece – ao modo do que fizeram outras poetas suas contemporâneas e ao modo como fazem também outras poetas posteriores a si – um novo movimento do signo poético, que primeiro busca no traço da diferença, mas não deixando de guiar-se por projetos mais solidificados, para uma refiguração do mundo. Um elo de resistência às paredes da ordem dominante, a fim de, como um caruncho que se alimenta dessa estrutura, promover uma destituição do dito pelo interdito.

O ilhamento da palavra, sua decomposição e recomposição em pequenos blocos, entre outras figurações estéticas constituem-se, ainda, em novidade pelo modo como o recurso, aperfeiçoado desde a lírica cabralina, dá enforme a ideia verbal sugerida pela poeta. A resistência da poesia encontra em Marize muitas faces. Muito embora estejamos diante de uma urdidura poética ainda em construção, o fabricar seu ora sugere a reformulação de condutas, ora sugere um mover-se de defesa e destituição discursiva, ora é crítica sem trégua ao descompasso, à desordem do mundo-fêmea em constante reformação. Não há espaço para nostalgia, nem para a utopia, o fim-em-si do poema propõe um mundo outro, de fendas expostas, de novas relações, em que a poeta se apresenta numa pulsação corpórea de dimensões escusas, pondo à voz o que foi silenciado, cerceado, cerzido, obliterado por uma ordem unicista, unilateralista e inteiramente a serviço de uma margem tida como superior às outras. 

Pedro Fernandes
editor 


Para ler e-ou baixar a edição clique aqui.


























"um bom poema, / por mais belo que seja, tem de ser cruel" 
Joan Margarit 

Lapidar palavras. Não é esse apenas o trabalho do poeta. É lapidá-las e recolocá-las em rotação. Porque palavras são, além de pedras, universos. Por isso mesmo, o ofício do poeta está para o de deus. Cada poema engendra na sua maquinaria um universo próprio e particular. Universo que se nutre da lama de onde emerge, mas customiza-se, vinga (não todos) e constitui-se em atmosfera paralela a esse real empírico que habitamos. Nesse estágio, o poema atua como sala de espelhos. Mas dela extrai-se um itinerário palpável que não se perde no espaldar dos reflexos. É esse itinerário o resultado de sua materialidade pétrea. As palavras têm dimensão, peso, massa e volume. Não tivesse não seria possível moldar esse universo particular do poema, como também se perderia o poema no mover-se do refrata-reflete. 

Foi-se então o tempo em que o poema era flor. Delicado. Fechado. Olhando para sua maquinaria e se enfeitando de balangandãs. Perfumado. Imaginação. Suspiro de iluminado na torre de marfim. Medido à régua. De passo regrado. Espartilhado. Povoado de donzelas. De palavras castas, virgens. Esse estágio há muito que se perdeu. O poema não é mais universo apartado. Deixou as alturas. Incorporou as dores do mundo sem se perder nelas. Incorporou as decisões do seu criador e fez-se denúncia. Gotejar perfurante. 

O universo próprio que se cria do mundo faz o poema movimento. Perdeu-se também, logo, o estágio de paralisia. Poema travelling. Há nisso tudo, ainda, o poema antropófago. Alimentando-se da maquinaria dos balangandãs e fazendo-se maquinaria simples. Absorvendo o eco dos antepassados e fazendo-se novo eco. Não muitas vezes (constantemente) invadido por outras tessituras verbivocovisuais. Nascendo, ora do ponto morto, da materialidade esvaziada (quase) de poesia. Ora fazendo-se por metástase: de uma palavra princípio do mundo, um novelo infinito. De tons destoantes. Estonteante. De toadas. 

Mas (alerta) nem tudo é matéria de poema. Poetas de brinquedo quebram-se. Não resistem à pancada firme da palavra. Palavra pedra. Objeto de duas faces. As duas cortantes. O trabalho com a palavra é, pois, coisa de gente séria. Não há aqui espaço para os aluados, os tomados de inspiração. O poema é espaço de labuta. Constante. Exige do poeta a persistência, a audácia, o suor, o êxtase, o sangue. 

Nesse estágio novo do poema, vejam bem, foi que encontrei com uma poeta potiguar de produção significativa. E digo o porquê. Porque tem na palavra a seriedade. E consegue, como poucos, reinstalar esses organismos, nem sempre em atmosferas aconchegantes, mas suficientemente capazes de fundir-se em universos próprios cuja emoção (do eu que canta) e a razão (do eu que fabrica o canto) mantém-se em equilíbrio. Cada obra dela é como um andar por sobre uma cerca de farpados. Talvez essa seja a metáfora mais concreta para entender o desafio de, primeiro, entender a sua construção poética e, segundo, ler seus poemas. Do modernismo, ela não herda a metástase. Herda a concisão. Mamediana, como parece caminhar todos os grandes poetas que vem depois de Zila e faz da poeta uma fonte. Por conseguinte ela incorpora-se no rol cabralino; não somente pela seriedade com a palavra, mas pelo zelo com que remonta e constrói seus universos. 

A concisão dessa poeta nasce no nome pelo qual se designa. Como o nome daquela portuguesa, poeta no registro, a poeta potiguar Diva Cunha – é este o nome e é dela a obra, ambos, nome e obra homenageados nessa edição do caderno-revista – reúne no primeiro nome a dubiedade da palavra poética. Faz-se diva, de divino (?), de deusa a remoldurar universos. Diva não usa apenas do trabalho físico das mãos para compor. Sua poética é fabricada com os laivos do corpo e daí a palavra em Diva é também corporeidade. E o poema sistema. Logo o universo que ela remoldura é muito particular. E tão próprio que parece inútil procurar correntes em que filiar a escritora. Particular, mas plural. Se o corpo todo tateia a moldura do poema, os temas sobre os quais se sustentam são diversificados. Como deve ser o poema nesse novo cenário da palavra. 

A palavra de Diva é ousada. Desvirgina formas femininas. É cúmplice com aquilo que diz. Coloca a tessitura do desejo na fenda da palavra. E tudo se ilumina no gozo louco, hemorrágico. Entendem os dois limites que a palavra da poeta alcança? É a concisão que se perde no despejar de sentidos. A palavra em Diva parece está sempre grávida. Cheia por todos os lados. E de uma elegância única. 


Pedro Fernandes 
editor

Para ler e-ou baixar a edição clique aqui.


























"O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face"
Mário Quintana

O mundo contemporâneo tem passado por movimentos diversos que encareceram o modo de existir dos sujeitos. Tanto é verdade que o fantasma encarnado na palavra “crise” tem sido o que hoje a tudo povoa. A consolidação das primeiras marcas desse fenômeno de crise, surgido pela soma de uma série de episódios, se dá, sobretudo, por aqueles elementos desencadeados da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Sem dúvidas, as transformações que este episódio, em particular, trouxe ao mundo não se resume apenas à modificação das linhas espaciais do continente físico europeu e as subjetivas dos indivíduos (dos seus modos de agir e ser), mas, feito rastilho de pólvora, se alastra e contamina o mundo todo e todos os setores; no terreno da arte não foi diferente: também as transformações se fizeram marcantes. Lembremo-nos dos movimentos da chamada era moderna que solavancaram esse território introduzindo novas temáticas, novas formas de uso da arte e novos modos e usos da linguagem.

É nesse contexto de modernidade que o ano de 1927 será, como um marco, significativo para a cidade do Natal. Pela época o eixo Rio-São Paulo lia Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade, de Oswald de Andrade, ou Clã do jabuti, de Mário de Andrade, dois dos principais precursores do movimento modernista no País e duas obras símbolo dessa nova maneira de fazer e entender arte literária. O motivo de tal importância desse ano é que por aqui, também como no Centro-Sul, se assistia a publicação de um livro inusitado, tanto na forma (86 páginas, 15X21, em forma de caderno de desenho e impresso em papel barato tipo de jornal) quanto no conteúdo (portando singelos quarenta poemas). E ainda vinha com um título inusitado, Livro de poemas de Jorge Fernandes. Tudo isso, aos olhos do nosso provincianismo causou, certamente, estranhamento e, por que não, celeuma no meio artístico, ainda, de certo modo, encantado com os versos primaveris exalando o perfume da rima perfeita.

A poesia de Jorge Fernandes inaugura por cá aquilo que já se operava com grande veemência pelo Sudeste. De modo que é uma poesia significativa porque rompe com a estética perfeita e bem desenhada do parnasianismo e vem apresentar que o exercício poético é mais do que “escrever versos metrificados/ contadinho nos dedos”, mas uma labuta constante que se apropria da matéria do próprio cotidiano e da língua corriqueira para refundar novas maneiras e usos da linguagem; o entendimento de que no poema se fundam novos territórios e novas dimensões do pensar e do existir; o poeta cria para si um mundo à parte (uma máscara, para uso dos versos de Mário Quintana) que lhe outorga fins mais puro e mais verdadeiro do que a própria realidade. Em Jorge Fernandes são elementos materiais da modernidade – as máquinas das fábricas, os automóveis, a velocidade, a imagem, a visualidade sonora, e os aviões, sobretudo (está aí o motivo da capa desta edição).

Além de toda essa importância para o cenário da Literatura no Estado, e esse será outro motivo pelo qual sai esta edição em homenagem ao poeta, ano passado foi publicada uma belíssima edição reunindo toda a produção de Jorge Fernandes; trata-se do livro Jorge Fernandes – o viajante do tempo modernista, organizado, em mais de trinta anos de pesquisa, pela professora Maria Lúcia de Amorim Garcia. Tal empreitada da professora reinaugura o olhar para a obra-prima de Jorge Fernandes e apresenta-nos outras faces do poeta e do fazer-se poeta. Logo, o nome de Jorge Fernandes constitui, peça fundamental a que esse caderno registra em homenagear na sua segunda edição: um poeta dono de um espírito moderno, que redescobre o poder da palavra; um poeta para uma era ainda mais sofisticadamente moderna e novamente ressignificado na corrente literária do Rio Grande do Norte. 


Pedro Fernandes
editor

Para ler e-ou baixar a edição clique aqui.



























"Um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos"  
João Cabral de Melo Neto 


“Um galo sozinho não tece a manhã” – eis o elemento impulsionador da ideia para confecção deste material. 

Na nota de agradecimento às contribuições recebidas, o caderno-revista eletrônico que antes pensava em juntar em si apenas poemas e poetas, expande-se para a ideia de recepção de textos de outros gêneros. E agora, na recepção do 7faces, o leitor haverá de notar que a ideia novamente se vê modificada. E, parece que, enfim, consegui encontrar a modelagem do que realmente pretendia com esse material. 

“Ele precisará sempre de outros galos” – eis o interesse/pretensão minha com esse veículo. Não surge ele para transgredir nada e nem com ambições maiores do que a de congregar em torno de um mesmo espírito, o da poesia, faces de todo mundo. Eis o princípio de quando lançada na rede que dizia tratar-se 7faces da gênese de uma rede poetas que ambicionava reunir as vozes de poetas de todas as tendências, raças, cores, nacionalidades, temáticas, do que pudesse caber nas infinitas páginas da Web. Logo, mesmo a ideia tendo se modificado ao longo de sua gênese e com a possibilidade de lançamento de um caderno-revista eletrônico, creio que esse propósito do seu princípio ainda prevalece. 

Só tenho a agradecer, evidentemente, a todos os que contribuíram com esta edição, cujos nomes já foram citados; é verdade que, sem os contributos, ela não haveria. Ou fazendo jus à epígrafe cabralina que em sua lâmina vaza essa ideia – de que um galo sozinho não tece a manhã – foram eles, os que contribuíram, galos-poetas, que me fizeram de uma forma ou de outra pensar e re-pensar diversas vezes num formato para o tecido desse veículo. 

O número que agora sai é dedicado a poeta potiguar Zila Mamede (1928-1985). Se fosse ser publicado no tempo oportuno estaríamos pelo cinquentenário de O arado – obra singular que vem trazer aos ventos literários do Estado um estágio outro do fazer poético, já demonstrado quando do surgimento das obras anteriores da poeta; cito, para ser mais específico, Rosa de pedra e Salinas. 

A ideia dessa edição já estava pronta e, mesmo fora do tom, devido a não anuência de uma data comemorativa prefixada no calendário, permanentemente pronta sai, porque nunca se é data fixa homenagear aqueles nomes que de maneira singular contribuem para uma percepção outra de nós mesmos e do mundo onde nos inserimos. A escolha pelo nome de Zila, deu-se, antes da celebração de uma data, mas a celebração de um nome – que alia-se com o material agora publicado. 

A escolha por uma mídia digital é simples. Além dos custos serem quase apenas o do tempo do editor, também é o meio eleito por excelência ao grande público, dando a liberdade de o leitor consumir o produto da maneira que achar conveniente: na tela do computador ou impresso, por completo o texto ou por pedaços. 

Digo, para finalizar, que este trabalho que agora é publicado já é, desde então, um sucesso por congregar no seu ventre tão variadas faces, tão variadas vozes.  


Pedro Fernandes 
editor


Para ler-e ou baixar a edição clique aqui