Qual a fronteira entre a poesia e a filosofia? Um leitor de Friedrich Nietzsche poderá afirmar com razão que essas fronteiras são líquidas, pela instabilidade ou mesmo pela indeterminação estético-formal. Mas, a interrogação aqui proposta não é de um leitor do filósofo alemão, embora a resposta não deixe de se pautar na leitura precoce e portanto limitada do conjunto de aforismos de Além do bem e do mal (Companhia das Letras, 1992). A interrogação aqui proposta é da leitura esparsa da obra de Orides Fontela. Seu discurso poético arregimenta uma reinvenção do mundo pela suspeição de corte filosófico e propõe ao leitor um contínuo enigma sobre as coisas, desprezando os vínculos de ordem mais realista ou material. Isto é, ainda que estejamos diante de situações das mais triviais, não deixamos de estar numa poética que se insinua por uma essência ou os lugares semitocados pela palavra.

A obra da poeta brasileira coloca o leitor numa posição que nunca é confortável, até mesmo ante o poema, trabalhado por ela como uma mônada; de modo que, o exercício de leitura de sua poesia é sempre de suspeição do nível comum, a ordem natural do mundo, para acesso a uma parte da ordem exclusivamente constituída de poesia. Este é o ponto de impasse acerca das relações entre o poético e o filosófico, uma natureza inovadora na poesia brasileira, que sempre esteve em melhor consonância com os conteúdos prosaicos, designadamente os ideologemas da história, da sociedade e daquelas vivências corriqueiras que uma vez traduzidas pela subjetividade ou objetividade com a polissemia do signo linguístico abre-se para outras zonas do sentido.

Mas, poesia e filosofia não são uma mesma coisa. Logo, existem entre elas fronteiras, ainda que não percebidas numa visita en passant sobre esses dois territórios. É verdade que as duas são atividades constituídas por um jogo de intelecção do mundo; e este jogo muitas vezes cobra do poeta e do filósofo – principalmente do primeiro – uma linguagem inovadora. Isso porque o mundo e nossa relação com o que o enforma só se manifesta mediado pela e como linguagem; assim, se os conteúdos poéticos e filosóficos querem novas percepções sobre as coisas, devem, começar por inaugurar outros lugares de linguagem. Essa tarefa recorrente entre os poetas não é estranha ao filósofo. Não será exagero afirmar que aquilo que se passa às margens dessa possibilidade é qualquer coisa entre um sofisma e a autoajuda.

As semelhanças entre poesia e filosofia findam, assim, como via de ver as coisas e como reinvenção dos estatutos da linguagem, muito embora, este último se constitua para o poeta, muitas vezes, em atitude finalística porque não meramente expressiva ou intelectiva mas formal e estilística. A questão poderia, então, ser investigada pela ponta do trabalho de criação, ou seja, pela maneira como o poeta e o filósofo constituem suas obras; e, se voltarmos ao ponto de partida dessa reflexão, pela outra margem dessa linha, a onde está situado o leitor. As duas possibilidades podem ser compreendidas da seguinte maneira: a poesia é resultada de um impulso criativo e sua finalidade, por mais que esteja enraizada no mundo e nas coisas que o habitam, é sua própria natureza, enquanto a filosofia expande-se e fixa-se no mundo e nas coisas; o leitor experimenta o conteúdo poético como uma circunstância estética e o filosófico como uma possibilidade de intelecção de si e da existência.

Para o poeta, pensar e sentir são suas maneiras de acessar o mundo. Cogentes da poesia, qualquer uma delas pode ganhar, entretanto, maior ou menor força. No caso manifestamente visível pela obra de Orides Fontela essa dinâmica ganha proporção pelo primeiro polo. É o que aproxima sua poesia da filosofia. Mas, se o poema não se constitui produto de uma resposta sobre as coisas, como o texto filosófico, é porque o poeta não guarda referência direta sobre o mundo – mesmo que a ele se refira diretamente. Indispensável lembrar o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: A vida passada a limpo. Quer dizer, o que está no interior e o que ronda o poeta constitui seu garimpo; passar a limpo é parte do seu exercício de lapidação. Consiste, qual escultor, em remover e modificar tudo até que resulte somente o essencial. E o essencial no poema é o que merece ser. Todo poema é força descarnada. Um objeto autônomo. Se não o é, almeja ser. É este seu princípio.

A poética de Orides constitui sua autonomia do mundo enquanto símbolo. Sua inclinação reflexiva, produto de uma intelecção original dada à poesia, não a leva ao poema longo. É sempre a tentativa de contenção, como se quisesse chegar ao ponto-limite, uma síntese, que ora se confunde como princípio e fim do pensamento. Por isso, estamos diante de uma poeta filiada a uma tradição que compreende a poesia como instante entre o ser e o mundo. E o poema, objeto autônomo, é, na sua poética, um enigma. Talvez justifique isso a predileção da poeta para o espontâneo, o que a aproxima, contraditoriamente, de um modo de criação cujas diretrizes se mostram pelos estatutos da inspiração, um comportamento de inegáveis raízes românticas. 

Entramos numa seara mantida pelo dilema entre uma concepção artesanal e uma concepção expressiva da poesia. Assim, ao tratar o poema enquanto produto de um acurado trabalho de lapidação pensamos no poeta como um manufatureiro da linguagem, o que, à primeira vista se opõe à feitura literária de Orides Fontela, uma vez que, a inspiração a aproxima de um ideal místico-casual em que o poema é manifestação ou revelação. Sabe-se, entretanto, que essa espontaneidade é puramente recurso expressivo da persona do poeta; as escolhas que determinam uma unidade de sentido da obra, notadamente nos contidos universos forjados nos cinco livros que escreveu, ou quaisquer outras intervenções introduzidas no objeto em constituição é, sim, produto que atesta para uma negação do dom mediúnico ou divinatório do fazer poético. Quer dizer, é possível compreender que sua espontaneidade reside não no feitio do poema, mas na vivência com o mundo e as coisas, na maneira como se mostram no poema, sem intervenções por sobreposição.

A edição agora publicada, vê-se, sublinha uma das mais importantes criadoras da cena literária brasileira posterior ao terremoto de 1922. Ninguém duvidará que Orides Fontela contribuiu de forma significativa para o progressivo afastamento da nossa poesia do sopro das vanguardas e do frenesi instaurado pelo modernismo, ampliando as fronteiras do espírito revolucionário que se inaugurou com tais movimentos. Isso não é pouco. Sua geração representou, sobretudo, o fortalecimento de nossas criações enquanto força autêntica na imensa correnteza constituída das literaturas mais consolidadas.

Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Diretor da Revista 7faces

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7faces. Ano IX, 18 edição, ago.-dez. 2018





Organização
Nathan Matos Magalhães
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Projeto gráfico, editoração eletrônica e diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
208

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
Tarso de Melo, Antonio Carlos, Ana Elisa Ribeiro, Bruna Kalil, Demetrios Galvão, Ítalo Lima, Lucas Rolim, Madjer de Souza Pontes, Mariana Basílio, Pedro Belo Clara e Shelly Bhoil

Autores convidados
Nathan Matos Magalhães, Gustavo de Castro e Márcio de Lima Dantas

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