A poesia é a
criação do sonho e da beleza que não há no mundo. O poeta é o que sente e vê o
que os outros não são capazes de ver.
Jorge de
Sena, Sinais de fogo
O excerto
recortado como epígrafe é de uma passagem da narrativa de Sinais de fogo em que
se apresenta a longa fala de um misterioso homem que, depois de livrar o
pasmado protagonista do romance e seu amigo de serem envolvidos numa artimanha
da polícia e capturados pelas forças opressivas da ditadura, se oferece como
anfitrião dos dois jovens; o texto pode muito bem ser lido, tal como aquele
discurso de banquete proferido pelo engenhoso fidalgo de La Mancha em louvor
das letras frente às armas, como uma exaltação, por vezes desinteressada, em
defesa à poesia contra um mundo obnubilado por forças estranhas e negativas.
No romance
em questão, marcado por um período de levante das forças opressivas – a Guerra
Civil em Espanha e a ascensão de Salazar em Portugal –, acompanhamos a
travessia de um jovem universitário que redescobre a máquina do mundo e, no
vasto campo de aprendizagens pessoais, é tocado pela chama da criação poética. Casual,
mas forte o suficiente para não o abandonar na primeira oportunidade, esse
fenômeno se imiscui em todas as práticas cotidianas e faz com que essa
personagem padeça de uma posição de ensimesmado do mundo. A recorrência de
Jorge pelos sinais dessa força que impele à criação, nele produzem, dentre as
várias modificações, um radical afastamento do imediato e uma reapropriação de
si enquanto ser no mundo.
Dessa
maneira é possível ler Sinais de fogo como um ensaio acerca do nascimento da
poesia, uma vez que, da história de Jorge, o jovem entrevisto pelas lentes do
adulto aquando de sua curta estadia de transformações – os três simbólicos dias
de veraneio na Figueira da Foz –, é a história do poeta em formação, ou mesmo
do poema não-nascido, isto é, a história por trás do seu nascimento. É notável
que isso não se desenvolve apenas como episódio ou situação narrativa. Reiteradas
vezes, é o próprio discurso do romance que se transmuta em discurso poético.
Isto é, na própria tessitura da narrativa se deixa embutir perfeitas germinações
líricas, das mais puras, fazendo-nos deslizar sorrateiramente da fábula para o
simbólico e o onírico.
É o
conhecimento poético que permite a Jorge formular um discernimento das coisas
fora das ideologias dominantes; só dessa maneira é possível vislumbrar
alternativas sobre os males do mundo – ou vê-lo, se não a sua inteireza, a sua
deformidade, o que, nem sempre se mostra aos olhos viventes comuns. Todo
retrabalho com a realidade não se opera pela negação ou afirmação veemente das
verdades; consiste na renovação da linguagem que as determina. A alternativa
pelo poético, reafirma uma postura segundo a qual mais que o indispensável
trabalho de se interrogar sobre as coisas e de denunciá-las é preciso saber-se
e transformá-las, dinâmica que nos implica enquanto sujeitos ao mesmo tempo
intérpretes e agentes.
Como
sublinha Jorge Vaz de Carvalho, na sua indispensável leitura de Sinais de fogo
como romance de formação*, a literatura, tal como descobre o protagonista de
Jorge de Sena, é produto de uma intuição formada por uma apreensão
fenomenológica do mundo; no longo périplo de um dia pela periferia de Lisboa,
que resulta ao protagonista o encontro arbitrário e sensual com vadios que se
banham às sombras da Torre de Belém, a vista de gente pobre que se apinha entre
os barracos, a reflexão descompromissada que resulta numa visão
fantástico-erótica terminada entre a concepção de novos poemas e a cena de uma
violenta masturbação, ele reflete: “Rememorando vagamente (pois que as palavras
se recusavam à memória tudo o que escrevera, senti que só a realidade, a outra,
a que se considera realidade, eu procurara. Não era a outra-outra, ou uma
outra-outra, o que eu pretendera atingir, na desordem angustiada da minha vida.
E, com certo orgulho triste, eu sentia que, enfim, a realidade estava dentro de
mim. Apenas só eu podia vê-la ou ouvi-la. Sim, era isso.”
Quer dizer,
a alternativa pelo poético permite a Jorge – e por conseguinte ao seu leitor –
que uma leitura coerente do mundo não passa pela refutação das superfícies
atuantes e sim pela renovação profunda das dinâmicas do pensamento sem
desconsiderar o uni e o diverso que nos define enquanto comunidade humana. A
travessia dessa personagem é, fora dos trânsitos poéticos, a de uma moral
idealizada e individual para um caráter do cidadão e seu lugar na grande arena
social.
Se a poesia
é a criação de um mundo diferente, como reflete aquela personagem misteriosa,
este mundo não é o melhor, nem o perfeito, tampouco o que substituirá o mundo
nosso. É o mundo através do qual podemos observar o que deixamos de observar
com os olhos comuns. Quer dizer, o poético é uma alternativa de saber visto que
nos amplia a capacidade de conhecer, o que não é, paradoxalmente, uma salvação.
Se algo nos conforta, também não é nossa danação. Do contrário, podemos ao
menos encontrar nele modos de não perecer à fatal ordem do mundo. Esta é talvez
a maior das descobertas propiciadas pelo trabalho poético de Jorge de Sena. A
poesia é, para o autor da obra homenageada nesta edição, uma ponte de acesso
entre nós e o mundo. Por isso tão necessário em dias gris sua redescoberta.
* Trata-se
de Jorge de Sena. Sinais de fogo como romance de formação (Assírio e Alvim, 2010).
Pedro
Fernandes de Oliveira Neto
Diretor da
Revista 7faces
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