viva eu, que inauguro no mundo o
estado de bagunça transcendente.
Murilo Mendes
Murilo Mendes encabeça a pequena
lista dos nossos poetas cosmopolitas. Viajou pela primeira vez à Europa em
meados dos anos 1950 e mais tarde neste continente constituiu sua vida pessoal,
intelectual e criativa. Bélgica, Holanda, Itália, França são alguns dos países
mais citados quando se busca construir seus itinerários pelo mundo. Mais tarde,
vai viver em Portugal, onde concluiu sua existência. E todo esse périplo
começa, quando se muda de Juiz de Fora, Minas Gerais, para o Rio de Janeiro com
o irmão mais velho. É na então capital do país que se constitui, outros
trânsitos, além do geográfico: as experimentações profissionais e também
criativas. O contato com alguns nomes da vida literária de então, tais como
Ismael Nery, fará com que se constitua o poeta que se apresenta em livro, pela
primeira vez, em 1930.
Mais de três décadas depois e com
uma obra capaz de sustentar uma ainda mais robusta antologia ― a primeira
publicação do tipo foi Poesias e reunia o trabalho composto entre 1925 e 1955,
deixando de fora materiais que o poeta, severo crítico de si, revia ao longo do
tempo como impraticáveis, “supérfluos ou repetidos” ― publica pela Moraes Editora, em Lisboa, Antologia poética. Parte da
impressão do livro foi feita no Brasil sob o selo da Livraria Agir Editora.
Numa espécie de prefácio deste livro de autoexame, como bem podemos designar
toda antologia organizada pelo próprio autor, o poeta mineiro redige uma nota
e, entre outras coisas, diz que é este “o livro-resumo de alguém que desde
adolescente crê na força da poesia como técnica social e individual de
interpretação da matéria da vida.”
Ora, o pequeno excerto apresentado
situa uma variedade de sugestões. A primeira delas, claro está, é o aspecto
periférico. Trata-se de um registro escrito pelo próprio poeta em modo de pista
para uma leitura da sua obra; a depender de como o leitor encontre com essa
passagem os sentidos em relação ao livro se transformam. Assim, se deparar com
a nota no final da leitura pode implicar a conclusão ainda não alcançada
totalmente ou mesmo um retorno para o ponto inicial do conjunto de textos a fim
de atravessá-lo outra vez; se, na ordem que está posta, para os leitores mais
metódicos que não mergulham numa leitura sem antes perscrutar os elementos que
antecedem o corpo do objeto que tem em mãos, um prenúncio sobre o que este
percurso lhe reserva; se ao acaso, pode ser este o ponto desencadeador para
entrar em contato com o livro; se pelo trajeto irregular, um fio organizador da
leitura. As possibilidades, portanto, são bem diversas. E em todas elas cumprem
com um papel organizativo, o que é, afinal, toda nota introdutória e todo
trabalho de antologia.
A errância de sentidos nascida do
contato do leitor com esta nota que não se constitui do simples critério
demonstrativo é uma boa maneira de se compreender a obra de Murilo Mendes.
Embora a crítica já tenha estabelecido quais são suas regularidades,
sintetizado assim suas faces, este é um universo poético bastante singular,
propositalmente afeito ao irregular. E a razão disso se oferece pela maneira
sempre questionadora como o poeta emprega os usos da linguagem, das formas, das
estruturas, dos temas e dos materiais para a feitura do poema. É dessa maneira
que podemos designar sua poética como resultada de um contínuo desejo que não
se deixa captar pela simples expressão de origem subversiva. Sim, há poetas
assim por uma espécie de impulso de natureza virulenta; estes podem ser
designados como rebeldes. Em sua maioria são frágeis, não se sustentam fora das
redomas que criaram para si. No entanto, esse não é o caso aqui; a subversão do
poeta de As metamorfoses não é impulsiva, logo, não se trata de pura rebeldia.
É rebeldia ciente. Isso significa que nada de suas decisões inovadoras devem
ser lidas como casuais ou produzidas apenas a posteriori dos efeitos de um
universo de polivalências.
Parece fazer sentido que tratamos
de uma ousadia criativa desinteressada dela própria como ideologema, isto é, da
ousadia enquanto teorética ou mesmo tema, e preocupada em oferecer novas condições
capazes de ressignificar usos, forças, sentidos, formas e estruturas de
linguagem, o que, no fim de tudo, é o princípio em-si e básico da poesia,
sobretudo, da poesia constituída nesse período de Murilo Mendes, marcada pela
inovação.
O mundo engendrado pelo poeta não
é feito apenas de contínuo questionamento das coisas mas de proposições capazes
de nos colocar, em deslocamento, em contato com outras ordens. Trata-se de uma
poética que prova dos sentidos usuais para fazê-los por deformação, modificação
― ou seja ampliação ― em divergências. Assim é o seu catolicismo, suas maneiras
de expor os impasses do mundo corrompido pelas artimanhas do capital, da
tecnologia em ritmo de ascensão vertiginosa e dos poderes cinzentos, e
questionar os próprios limites autoritários das estruturas e das formas
artísticas. Esta é uma poética nascida do confronto entre o eu e o mundo, uma
vez que compreende a poesia como força propulsora da matéria da vida.
O liminar constitui um início de
algo, é o que se coloca no início de um livro, como um prólogo, um prefácio; o
liminar é ainda ponto de passagem, o limite. No âmbito jurídico, é um pedido
específico nos processos quando não existem requisitos legais; por ela, a
autoridade judicial pode confirmar ou invalidar algo; é sempre provisória.
Todos esses sentidos participam no jogo intelectivo desse fragmento da
profissão de fé do poeta. Assim, se compreende desde o título da apresentação
ao livro de 1964, “Nota liminar”, como uma consciente provocação: o poeta
subverte o aspecto periférico de um livro, uma nota, ao torná-la essencial.
Oferece uma via de acesso entre o projeto literário conduzido até então e os
possíveis desdobramentos posteriores a antologia; e estabelece um tratamento
instrutivo e judicativo provisórios ao seu leitor. A provisoriedade não se
restringe ao tempo do livro, isto é, um designativo para a antologia, mas à
própria compreensão da atividade criativa, toda ela feita da variabilidade de
intelecção acerca do fenômeno poético.
O poeta especifica que desde a
juventude a poesia lhe é “técnica social e individual de interpretação da rude
matéria da vida”. Afasta-se, desse modo, a ideia romântica do acaso ou da
espontaneidade de criar, esta última algo recorrente entre os poetas
modernistas e constitui em Murilo Mendes o seu contrário, isto é, no que
podemos designar como um grau consciente da feitura do poema; este é um objeto
constituído pelo trabalho intelectual, logo, alimentado por todas as forças que
participam no seu estabelecimento. Assim, não é apenas uma propriedade do
sentir e do pensar; sentimento e pensamento acessam o mundo e nele buscam os
elementos que lhe dão consistência. É aqui que a poesia, como potência movente
e mobilizadora, se avizinha e se imiscui de outras manifestações e práticas de
linguagem. Nesse caso, os elementos constitutivos do universo do poeta são as
suas reminiscências de memórias, os episódios capturados pelos sentidos, os
fenômenos indecifráveis que participam da realidade física das coisas, o
funcionamento das ideologias e toda parafernália interposta entre o eu e mundo.
Uma maneira de compreender a obra
de Murilo Mendes, de contorno desmesurado, é deixar-se errar pela variabilidade
proposta por um poeta que rejeita o estático e se integra nunca comodamente aos
múltiplos deslocamentos propiciados pela contínua movência dos sentidos. É
também essa movência que faz encontrar o díspar e do entrechoque entre
elementos de natureza irregular se forma outra ordem, outra lógica ― e então
estamos integrados a um universo que foge das oposições, dos estereótipos, das expressões
normais do mundo. É nesse sentido que a obra desse poeta se constitui entre as
mais valiosas da nossa literatura; produto de uma consciência desenvolta,
movida pela dispersividade e ciente de que a partir de então, desta, ninguém
mais escapará, essa obra se tornou ao mesmo tempo expressão de seu tempo e
singularidade universal e perene.
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Diretor da Revista 7faces
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