Somos aquelas que
imprimem
às histórias outros
olhares
outras formas e
maneiras
— Maria Teresa Horta
Uma das bases da
poesia, talvez a principal devido sua própria natureza, é a dissidência. Não é
acaso, portanto, encontrar com maior facilidade na extensa lista de poetas de
uma literatura e mesmo no rol dos que permanecem além das suas circunscrições
apenas os que compreenderam bem esse desígnio e ultrapassam, de maneira
diversa, as múltiplas fronteiras do convencional.
O horizonte dessa
afirmativa pode ser ampliado; estendido ao papel da própria literatura, isto é,
não apenas da poesia. Mas, se isso é possível — e tem fundamento mais ainda nos
tempos vigentes — se deve primeiramente à força deste gênero que, desde a
origem imemorial das múltiplas noções que o designam se constituiu como
vilipendio da ordem, especialmente se pensarmos no poeta como uma figura — qual
um Prometeu — que rouba o protagonismo do Criador no trabalho de forja de outro
mundo feito com a matéria e os resquícios desse que habitamos.
Muitos são os
constituintes da dissidência e neles podemos buscar a desobediência, a negação
e a recusa. Nenhum funciona como determinação ou puro ímpeto. Se em nenhuma
parte cabe a primeira, o segundo, como o impulso essencial do dissidente, não
se sustenta se não estiver amparado por uma maneira de ser e estar no mundo
fundada em princípios próprios. Isto é, o dissidente não é o adolescente
rebelde, o pura e simplesmente revoltado com a ordem. O ímpeto puro e
simplesmente é fogo-de-palha. É mais destrutivo que produtivo e, claro, é
sempre bom desconfiar dos comportamentos condicionados sem alguma proposição.
Deles, sabemos pela história, sempre saíram o pior de nós — coisa também que
não é a poesia, se nela acreditamos com a literatura, como o nosso melhor.
O poeta se desfaz do
dominante para oferecer uma possibilidade individual do mundo. Isso não
significa uma postura alheia ou a verdadeira; significa se assumir de encontro
ao estabelecido, sobretudo, quando este, direta ou indiretamente, se assume
como negação do mundo, de natureza sempre variada e complexa. Em parte, isso
confirma o que designaríamos como um papel cívico universal — o compromisso de
qualquer indivíduo para com a coletividade — que no poeta se assume por
dimensões que escapam ao puramente político ou ideológico. Por mais que agora,
em nome de uma justificação utilitarista do literário, herança do
estabelecimento grassador da sociedade do consumo, isso se mostre tão acentuado
que por vezes sobreponha as dimensões originais do poético, não é essa justificatição
parte exclusiva das dimensões que o sustentam.
Sendo a dissidência
uma posição no mundo e este um sistema constituído de múltiplas ordens, cada
uma sempre um problema e matéria para o mundo do poeta, um poeta é feito de
muitos. Antes disso, desobedecer, negar e recusar — para verbalizar alguns dos
constituintes da dissensão anteriormente destacados — pressupõe sempre (é ato
contínuo, sublinhe-se) assumir uma variedade de faces (mais que as sete já
conhecidas) e estas podem sempre se capturar pela obra, na sua unidade ou
heterogeneidade. Assim, toda a unidade do mundo estruturado pelo poeta se
organiza por derivas e é uma multiplicidade feita de variáveis assumidas — continuum
cívico a ele indispensável como indivíduo de uma coletividade — ou entrevistas
na poesia, isso que alguns se referem como consciência estética.
A obra de Maria
Teresa Horta é um dos exemplos mais convincentes da poesia do século XX que se
fez dissidência. A primeira de suas negações se mostra na atitude de se assumir
poetisa — em clara e dupla ruptura com as convenções vigentes no seu contexto
de estreia na literatura: primeiro reocupando um termo que depois de integrado
à oficialidade do vocabulário sofreu o assoreamento da estrutura dominante que
atribuiu à palavra um efeito pejorativo; depois, pela desobediência servil
assumindo-se protagonista no complexo processo de emancipação das mulheres.
Ora, em 1960 já
existiam em toda a parte mulheres integradas à literatura (esta uma das ordens
do mundo); isso, claro, não é novidade, que elas sempre aí estiveram, apesar
dos apartes, dos impedimentos, das matrizes estigmatizantes, dos
silenciamentos, das imposturas, tudo administrado por um domínio sectário e
masculino. Mas, quando avistamos o contexto português, notamos que a afirmativa
ganha outro peso e sentido. Aí, essas cisuras ainda se faziam acachapantes
tendo em vista que as saídas do predomínio de uma ordem centrada no mando e na
ferradura só chegaram aos portugueses nas últimas décadas do século passado.
É dese modo que Maria
Teresa Horta se inscreve entre as que passaram pelo fogo da inquisição de seu
tempo e os efeitos disso são ainda perceptíveis — positivamente porque sua obra
é em parte derivada desse contexto e negativamente porque essa mesma obra é muitas
vezes colocada à parte pelos detratores de agora. Sim, estes nunca deixaram de
existir; comem e se vestem como todos, mas ainda se fazem integrados àqueles
princípios dos tempos de treva. Assim, é que os silêncios (eventuais mas
constantes) sobre a obra ou a ausência em determinados círculos e circuitos (explícita
ou velada) mesmo depois de provada sua
qualidade e grandiosidade não são gratuitos. Principalmente quando sabemos que
o projeto criativo da poetisa aqui lembrada se estruturou a partir de um não
muito visível às convenções: a “aquilo/ que os outros queriam”; à “sina/ de
destino preparado”, para tomar algumas linhas do seu poema “Desobediência” (Poesis,
Editora LeYa, 2017).
Quando falamos sobre
Maria Teresa Horta, não falamos sobre uma mulher marcada apenas pelo ímpeto
juvenil que se colocava na linha de frente à condena imputada pelas rédeas de
um governo inescrupuloso amparado numa moral fajuta; todo seu impulso sempre
foi parte de um sólido lugar no mundo feito da matéria do desassossego e
pautado num valor coletivo de base individual, a liberdade — termo-vivência
quase sempre ignorado ou corrompido de sua validade muitas vezes até mesmo
pelos que se assumem libertários.
Alguém poderá tomar
a dissidência como resistência, outra palavra colapsada pelo uso a torto e a
direito do nosso tempo de excesso da fala. Mas aquela talvez ilumine o real
valor desta; se destravamos a passividade entranhada no resistir, logo
encontraremos o que é resistir: produzir ação sobre o mundo, modificando-o, subvertendo-o,
sempre em vista com a liberdade. Por isso, a poesia de Maria Teresa Horta se
faz perene: a única justificativa que nos interessa para estar vivos é a de que
só por nossas mãos se é capaz buscar um mundo possível ainda que nunca possamos
alcançá-lo totalmente.
Pedro Fernandes de
Oliveira Neto
Diretor da Revista 7faces
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