O ato do poema é um ato íntimo,
solitário, que se passa sem testemunhas.
João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto
Pedra do sono foi o primeiro livro
de poemas publicado por João Cabral de Melo. Pedra inaugural, portanto. É
interessante reparar como o primeiro elemento desse sintagma se converteu em
intermitência no seu trajeto literário; um ponto de retorno mas nunca de
descanso, contrariando a sugestão onírica demonstrada na presença do segundo
componente. Como se uma educação do poeta ― para recuperar os termos utilizados
no designativo de outro livro publicado mais tarde, A educação pela pedra ―
devesse primar continuamente pelo reinventivo, este que resulta quase sempre,
no inovador, como se cada livro fosse uma peça distinta de uma composição. Se
de escolas falamos, a esta devemos acrescentar outra, A escola das facas
(1980), quando reconhece, também de muito antes, a influência deste segundo
elemento na sua poesia.
Na obra de 1942 é visível o
diálogo que manteve com o surrealismo no início de sua formação literária; mas,
propositalmente recompôs a estética à sua maneira: um surrealismo estruturado,
sem se entregar ao tratamento da escrita automática. Essa vaga não se
dissiparia totalmente de imediato, ainda que, mais tarde, o próprio poeta tenha
desenvolvido uma recusa sobre a escola ao ponto de questionar sobre o papel
deste primeiro título e de outros poemas num projeto literário fundamentado
numa tentativa de objetividade da palavra. Mas, uma simples visita pela sua
bibliografia ativa, em nada espartana, nos levará reconhecer que não foi este
projeto fundado apenas na tendência que o distingue no âmbito da poesia
brasileira, uma vez que, da verve surrealista, sua obra não deixa de transitar
por uma poesia de tons memorialistas e formas mais populares, ainda que o
reconhecido sucesso de Morte e vida severina, do qual deriva a última fonte,
repouse mais numa posição assumida de um imaginário advindo de suas releituras
em outros meios que propriamente do texto original. Quer dizer, o grande mérito
do poeta terá sido converter as recorrências no conteúdo poético em benefício
de uma dicção autêntica e irrepetível, uma característica que ressalta a
posição que alcançou no âmbito das literaturas de expressão portuguesa.
À pedra e à faca ― e o poema
dramático de 1955, logo nos sugere ― deve-se acrescentar o rio. São estes três
elementos capazes de descrever, mesmo que não sintetizem, a poesia de João
Cabral de Melo Neto. Não sintetizam porque nela se contém toda uma geografia
dos seus afetos: o Recife que contribuiu para sua primeira formação e nunca saído
do poeta e algumas cidades da Espanha que levaram-no descobrir seu lugar natal.
Sevilha, por exemplo, não é puramente uma cidade da Andaluzia, mas a
transfiguração material de um Pernambuco habitado pelo poeta, mais da estruturação
de um imaginário que puramente de memória. Ora, é verdade que nada mais sobra
do devaneio romântico advindo das saudades da terra tropical, porque a poesia
cabralina expulsa quaisquer sentimentalismos (e tropicalismos), mas o lugar
original é o Éden do poeta, não no sentido da exuberância que a princípio o
termo sugira, obviamente, e sim no sentido de repouso, do ponto original,
matéria com a qual se moldam os materiais constituintes de seu universo poético.
Numa conferência de 1952, o poeta
ensaia a discriminação de dois princípios criativos: um coletivo, integralmente
pulverizado desde a modernidade; e outro individual, então vigente. Este último
conduz o poético para soluções diferentes à feitura e composição dos mundos
inaugurados pela criação literária. Nesse sentido, o poeta deixou de ser o que
domina uma vasta experiência criativa e é o que busca dominar os tiques
particulares que constituem seu estilo. Sempre se diz que quando um poeta fala
do seu ofício ou da obra sua e alheia expressa alguma parte da sua profissão de
fé, constituindo indiretamente seu tratado particular de criação. Essa certeza
que não é falsa, confirma, numa vista ligeira, que as definições de João Cabral
de Melo Neto em “Poesia e composição” esclarecem o que se disse acima: toda sua
poesia é uma tentativa de singularização do mundo e das coisas para mostrá-lo
sem quaisquer misticismos: “o poema no qual não entra para nada o espetáculo de
seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem
perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos”,
acrescenta o poeta.
Uma das últimas aparições públicas
de João Cabral de Melo se deu numa passagem bastante atribulada de sua vida,
aquando da perda progressiva da visão; foi uma entrevista conduzida a várias vozes
para os Cadernos de Literatura Brasileira, publicados pelo Instituto Moreira
Salles. Mais isolado do convívio público e muito avesso a quaisquer celebrações
em torno da sua obra, nesta entrevista, o poeta registra parte importante do
seu ofício e da poesia como um todo. É quando se apresenta uma formulação
metafórica, tratada certamente na intimidade dos poucos convivas, uma vez que
puxada pela companheira Marly de Oliveira. O conceito está em perfeito diálogo
com a tese levantada em “Poesia e composição”, ampliando-a pela imagem sobre o
poeta motivado para coletividade e o poeta individualista: o primeiro carrega
consigo toda uma época, enquanto o segundo introduz cisões. É importante
destacar que esses sistemas aparentemente binários não reduzem a poesia e seus
criadores a duas classes em oposição, visto que entre uma e outra destacam-se
mesmo poetas e obras que se estabelecem como pontes dialéticas. Mas, na
sinalética cabralina, ele próprio é um poeta perfeitamente integrado ao segundo
grupo ― sua posição na cena da nossa literatura é isolada, é o poeta cuja obra coloca
um freio na espontaneidade modernista.
É verdade que a histografia
literária sempre se utilizou, muito pelo instinto do continuísmo linear
recorrente na concepção dominante de história, de duas tentativas
conciliadores. De um lado, é comum se utilizar da condição de filho bastardo do
modernismo para acentuar uma integração da poesia cabralina a uma linha
original da nossa poesia. Isto é, uma tentativa de explicitação das suas
origens pelos pressupostos da Escola de 1922. De outro, agora pensando o
momento de sucessão, tenta-se adequar, forçadamente, sua obra entre os
precursores da poesia experimental dos concretistas. Mas essas determinações se
formam mais intuitivamente que comprovadamente. Se por um lado encontram as
justificativas que abrigam o poeta entre os reconhecidos, por outro, impedem ao
leitor de encontrar os valores que o distinguem não entre mas dentre os demais.
Cada poeta se afirma pela individualidade que alcança com sua obra e toda obra
de um poeta precisa primeiro ser lida sem a interferência de outros reflexos
que não os dela própria. A confirmação disso não foi dada por João Cabral de
Melo Neto, mas entre nós, foi exercida por ele. E é o suficiente.
A cesura com que singularizou os
usos da linguagem poética ultrapassou os limites do fazer poético até então
vigente e implicou no estabelecimento de uma posição do poeta dentre o cânone.
Assim, o costume de se atribuir ao autor de O cão sem plumas o papel de
continuador da estética modernista é redutor, porque sua obra se apropria da
liberdade de criação aberta aqui, mas propõe outra maneira de construção
literária totalmente distinta da pauta em vigor, substituindo, por exemplo, a
irrupção do acaso, o instante excepcional ― possibilidades que se examinadas de
perto não se encontram muito distantes do que os próprios modernistas
condenavam ― pelo trabalho laboral com a palavra, fazendo com a que a poesia se
estabeleça como espírito dos objetos criados e não que estes sejam o
aprisionamento da poesia: “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa”,
diz na referida entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira. “A poesia é
uma composição”, emenda. Já o lugar de precursor da poesia concretista, talvez
recorrente devido ao zelo com a forma e a objetividade da linguagem, também é
facilmente questionável, visto que, nunca foi seu interesse uma intersecção
entre voz, forma e conteúdo. Quis, antes, uma voz, uma forma e um conteúdo
capazes de responder pela própria individualidade do objeto criado. Nesse
sentido, talvez só nisso, ele se aproxime da chamada Poesia Concreta, mas, como
repara, esta é a condição de todo poeta desde uma pulverização do poeta signo
de uma coletividade. João Cabral nunca deixou de referir que os concretistas,
ainda que se note uma extensão do seu trabalho, “fizeram uma coisa inteiramente
nova”.
A posição individual se dá,
esclareça-se, não porque se rompeu os estreitamentos entre o poeta e a
sociedade; mas aquele deixou de estar acima do coletivo, deixou de ser o
indivíduo eleito, para se individualizar pela coletividade, o que, pela maneira
de singularização do mundo, pode se constituir dentro e fora da coletividade,
antena do seu tempo, para recuperar a medida metáfora mallarmaniana. Isso
justifica de maneira mais ou menos precisa a imensa solidão do poeta num
universo de fronteiras incontornáveis. Neste firmamento, João Cabral de Melo
Neto não é o satélite que no seu entorno abriga todo um sistema; brilha porque
alto vive.
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Diretor da Revista 7faces
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