A POESIA, UMA VIA DE VER AS COISAS

No começo de tudo, quando a palavra e o mundo estavam fundidos e as linhas entre um e outro, portanto, não se difundiam, a poesia estava na matéria do gesto, no pulso do corpo em êxtase, no lugar do divino, numa dimensão, por isso, dada a poucos. Todo poeta, é por essa razão primordial, um geômetra do universo, e o seu exercício escritural nunca poderá está reduzido ao movimento da letra desdobrada uma após outra no espaço amplo do branco da página. Se assim ocorre o universo será estrutura opaca, um defeito, uma mancha dispersa presa no papel. Aliás, a poesia não pode está reduzida ao desenho da forma informe ou do sentido invertebrado do texto. Ela deve conspirar e ter pulso para saltar da superfície lisa da folha e ser matéria pulsante, suspensa, atmosfera capaz de atuar no desempenho do corpo humano, pela lágrima, pelo riso, pelo gozo. É nesse instante que ganha, a palavra, seu real lugar no complexo sistema a que pertence e se ilumina a ponto de refundar o sujeito e o ser.

O poeta enquanto feitor do poema, instante em que primeiro se prime em suas fronteiras as possibilidades da poesia, é somente aquele capaz de conviver no limiar de uma epifania constante que lhe permita está cercado do tempo primordial; epifania que é um fenômeno do espírito e diz uma maneira de estar locado e simultaneamente deslocado. Um pulso de iluminação. Não há, para isso, leis próprias, fórmulas prontas de se ensinar. Há para isso a necessidade do poeta ser feito pela vivência da palavra e seu denso universo fulgurativo. 

Não é poeta aquele que se derrama pelos cantos, que faz histórias de histórias pintando o papel de ponta leste a oeste de berros de amor, de factoides vazios, porque o amor e as vivências são coisas moventes, sentidas mas impossíveis de sua partilha como cópia fiel pelo dorso da palavra. Nunca o poema será mímesis se o poema é sempre criação.

Também não é poeta o que quer ser qualquer coisa que o valha, inclusive poeta; poeta não é profissão, é modo de estar no mundo. A busca cega pela forma, fruto de um encantamento pela palavra e uso inadequado das maneiras do tecnicismo que suprime o próprio pulso da letra, da voz que lhe antecede, é vã; terá e tem levado muitos por descaminhos que nada tem do poeta e da gesta do poema. A busca do poeta que deve se dá pelo dorso da palavra é a de se reaproximar do estágio genesíaco do universo e os únicos guias nessa empreitada são ele próprio e sua vontade de experimentar-se pela boca dos seus antepassados, aqueles que fundaram e ultrapassaram a esfera do tempo comum e se fizeram eles mesmos tempo.

Por motivos como estes, ninguém melhor que Dora Ferreira da Silva para ser homenageada neste caderno-revista. Não é que a poeta tenha uma obra alheia a si e ao mundo empírico, mas ela é o constante estágio de epifania entre este e o lugar genesíaco. Sua poesia parte das dissonâncias existenciais, e só este instante já é de natureza poética, para ultrapassá-las e alcançar um instante único na extensa rede de vozes dos seus antepassados. Alimenta-se de um teor estético e renova o diálogo esquecido pelos estetas da forma, o que não quer dizer que esse trabalho de elaboração esteja ausente na sua obra; do contrário, talvez até esteja mais que em outros, porque a poesia de Dora se guia pela experimentação e refiguração do simbólico que ora se manifesta no poema através da composição linguística, ora através do corpo estrutural do texto. Sente-se, que sua poesia é muito estudada e talvez por isso consiga cumprir o seu papel no universo da linguagem e fora dele: que é o de promover o reencontro do sujeito com outros lugares e a partir daí seja encorajado pela descoberta do universo primordial reencontrado por Dora.

Pedro Fernandes
editor


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