A POESIA NÃO É

A poesia encarna uma verdade. E o seu poder de composição da verdade só pôde ser descoberto muito recente quando seus feitores, os poetas, descobriram a ineficiência do ornamento e viram que a grandeza ou a dignidade do verdadeiro residem na simplicidade nua da palavra. Tal descoberta destituiu a poesia de seu lugar acima do homem. Agora, seu papel é terreno e a sua verdade é uma busca para o que é a palavra e sua capacidade, o que é o universo no qual se situa, qual sua composição e o que ele significa.

Tudo no poema tem existência própria. O universo do qual fala tem sua singularidade; a morfologia e a sintaxe têm respiração própria. Nada aí é desenhado pela lógica comum e nem pelo trato da gramática para com a linguagem. A voz do poema não se reduz a chamar as coisas pelo que elas são. Para compor sua verdade, a poesia se faz pela recusa: a recusa de si e da ordem geral do mundo.

É mérito dela o mérito da palavra, a exploração, a descoberta, a recriação; experimentar-se e experimentar o mundo. Desrealizar o alcançado pela retina; despersonalizar-se na extensa galeria das vozes; desler; descodificar; destruir. Tudo, elementos de um processo que mira a fuga da alienação e que anseia a não desumanização do homem.

A poesia deve ser sensação; a imagem, a música e o gesto são movimentos da consciência antes só explicados, mecanicamente, por uma razão lógica cunhada pelo homem. O poema não segue a razão lógica e confunde-se com o próprio gesto da consciência. Não existe para ser ritmo, rima, e contenta-se, por vezes, com a beleza da disritmia. Não existe preocupado no bom grado, mas na capacidade de inquietar e “empenhada” na relativização do instituído.

Tem uma existência própria, mas não se basta. Depende das determinações temporais e espaciais, embora não esteja subordinado a elas; depende do poeta, manipulador da palavra, ente que intermedia a relação do homem com o mundo. Reside no movimento de intermediação e tem, portanto, no poeta seu limite.

O poeta mantém com a palavra uma relação sísifica. No instante em que detém o domínio sobre a palavra é por ela dominado. E por isso, toda poesia é uma verdade, é uma sensação e, também, uma postura diante da existência. É equilíbrio entre a transitoriedade do ser e das coisas, numa dicção que quer ser impessoal, no sentido de que a palavra na poesia não tem sua nascente num eu empírico.

Se a poesia encarna uma verdade, o objetivo do poeta, mais que falar a outros homens e pelos outros homens, é o de dizer verdades. Não são verdades prontas e acabadas, polidas e centradas como quer a racionalidade que rege o mundo. Uma vez estarmos diante da exploração e da descoberta, as verdades ditas são de um tipo especial: são complicações, paradoxos, herdados de sua própria materialidade de composição – a palavra. Porque o poeta é o que procura libertar a palavra de sua aparência e usualidade. Logo, a palavra no poema é desvinculada do convencionalismo e o trato do poeta neste instante é o de potencializar o caráter polissêmico da verbosidade, expandindo os seus horizontes e as suas fronteiras.

É assim que se processa o trabalho de Salgado Maranhão.  O caráter de sua poesia não se reduz, evidentemente, à mera reatualização do signo linguístico. Quer o poeta com esse movimento proposital levar o leitor ao estranhamento do mundo. Se a palavra é ponte que interpela o sujeito e a relação com sua interioridade e exterioridade, o reavivamento dos sentidos quer ser uma proposição para uma nova visão das certezas, das experiências, das apropriações e da conduta que o homem assume perante a própria vida. A palavra corrompida revela a transitoriedade das coisas e dela própria no mesmo instante em que, se individualiza e passa a constituir o limite da própria existência do homem: a vida passa, a poesia a eterniza, porque individualizada a palavra se torna atemporal, inexorável.

A poesia de Salgado Maranhão é inquietação; tentativa de acesso à representação de uma episteme do mundo. É luta contra a limitação da palavra frente à ordem do universo – “e as palavras mordem/ a inocência. Aferram-se ao que é de pedra/ e perda”; é conflito entre o poeta e palavra, entre a palavra as coisas. E, em não raros casos, seu trabalho é do conflito entre o poeta e a sociedade com seus valores, consolidando um plano já decidido em Ezra Pound. A verdade é que sua poesia quer está no impasse, na ressemantização do dito, no silêncio, no hiato entre o signo e a representação. Nesse interregno, a palavra é para o poeta um desafio à razão, lhe serve de lugar para alinhar o ritmo do mundo no burburinho da criação, onde nada finda e tudo é princípio.


Pedro Fernandes
editor

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