"Quando já
abandonamos a crença em um Deus, a poesia é a essência que ocupa seu lugar como
redenção da vida"
Wallace
Stevens
Muito já se
escreveu sobre o caráter valorativo da poesia. Sobre o seu papel nesse mundo
tresloucado. Mas, todos parecem concordar, entretanto, que esse valor e esse
papel da poesia não são instituídos por padrões fixos e são, portanto,
imensuráveis e reduzidos a si próprios. A questão não se finda aí, no entanto.
E por isso entro para o rol dos que voltam a ela só para, mais uma vez, dizer
que esse fim em si da poesia está para além do seu próprio estatuto. E que esse
fim desempenha um movimento para além das fronteiras do signo poético e sua
dimensão é ampla o suficiente para entender a poesia com materialidade
constituinte da ordem real do mundo empírico; muito embora o mundo empírico a
rejeite, a poesia faz-se força corrente, escorrega sorrateira por entre suas
fendas e aí se instala sendo capaz de reinventar a ordem das coisas. E isso não
tem nada a ver com uma pedagogização gratuita do mundo, um amolecimento da
dureza da racionalidade ou como quer ainda os mais puritanos, um florear do
real. Sobre isso já tenho dito que estamos longe no território da poesia. Ela
tornou-se materialidade inquieta e inquieta o suficiente para ser aquela que
aponta com o mesmo dedo em riste do romance, por exemplo, o caos do mundo.
Sobre o caos
do mundo a poesia ocupa a dimensão não de estatuinte de uma ordem, mas de sua
problematização. Se antes o mundo parecia um sistema muito bem elaborado, com
proa conduzida pela figura de um navegante superior que detinha as coordenadas
e dizia – sem dar as caras – qual seu papel na cabine da condução; se antes o
sistema bem elaborado se guiava por regras próprias às quais o homem, reles
mortal, não tinha acesso; hoje o movimento é avesso disso tudo: olhamos para os
mais de não-sei-quantos anos-luz desse mar de estrelas e percebemo-nos sem
capitão; o sistema, até que possui regras próprias e está mais ou menos bem
estruturado, mas noutra ponta, a certeza de não termos capitão e de sermos
agora criador-e-criatura, deu ao mundo uma destituição de sua cartografia e ao
homem a vontade real de ser imortal. A poesia entra aí como unidade maleável no
processo de reconhecimento do mundo-em-si, do homem-pelo-homem, do homem-deus.
Isso parece ser suficiente para ver na poesia como espaço de redenção do homem
perante sua existência e, consequentemente, da vida perante a vida. Nesse
processo, instaura-se ainda o caráter de resistência da poesia.
O sopro da
nomeação – instituído na criação do mundo ao Adão – é um sopro poético.
Reconhecer a natureza com tudo o que ela tem, fundamento da linguagem,
instituição do mundo, por extensão fundamento da poesia. Se ela se desvinculou
do movimento sagrado e desceu das torres de marfim, porque os deuses todos
estão mortos, a poesia, logo, ocupa o extenso vazio por eles deixado e firma-se
como sentido das coisas e do mundo. Não deixa de ser posta sob pelos-ares como
representação vazia ou inutilidade verbal, isso pelo modo como o rumo da
construção do sistema que rege a redoma social tem sido pensado, articulado e
construído, ao longo de vários séculos de dominação e exploração.
Contemporaneamente, a espetacularização, o consumismo, a massificação, a
coisificação do homem, a nulidade da vida e o desenvolvimento de uma teia
crescente que suga e deglute a todos e nos ameaça (e muito tem nos
transformado) em escravos cativos, mentes obsedadas, esquemas a serviço de, eis
que a poesia resiste. Resiste no ato de reincorporação do corpora semântico, de
refacção dos esquemas verbivocovisuais, da reformulação de sua própria
consciência de ser-poético e firma-se como contra-corrente para destituir a
hostilidade, o absurdo, a falta de lucidez. Firma-se como um grito, um perfil
esguio, esquivo, revolto, retorcido, alimentando-se não somente de si – sua
substância vital – mas deglutindo, antropofagicamente, a indigência, o avesso,
o retrocesso. Fecha-se para si, fala de si-para-si, mas expõe a nu os
movimentos de obliteração que a reduziram em fantasmagoria. Mas sobrevive. E
sobrevive.
Aqui se
inscreve a poesia de Marize Castro. Não quero reduzi-la ao tom feminino a que a
crítica comumente tem-na associado e o fundo sobre o qual a poeta tem se movido
ostensivamente. Mas quero entender Marize Castro no epicentro de um movimento
escritural que se firma como sujeito-ator no processo de reconstituição
simbólica do mundo pela palavra – signo feminino, mas largamente cultivado por
uma colônia patriarcal. A poeta de Marrons crepons marfins estabelece – ao modo
do que fizeram outras poetas suas contemporâneas e ao modo como fazem também
outras poetas posteriores a si – um novo movimento do signo poético, que
primeiro busca no traço da diferença, mas não deixando de guiar-se por projetos
mais solidificados, para uma refiguração do mundo. Um elo de resistência às
paredes da ordem dominante, a fim de, como um caruncho que se alimenta dessa
estrutura, promover uma destituição do dito pelo interdito.
O ilhamento
da palavra, sua decomposição e recomposição em pequenos blocos, entre outras
figurações estéticas constituem-se, ainda, em novidade pelo modo como o
recurso, aperfeiçoado desde a lírica cabralina, dá enforme a ideia verbal
sugerida pela poeta. A resistência da poesia encontra em Marize muitas faces.
Muito embora estejamos diante de uma urdidura poética ainda em construção, o
fabricar seu ora sugere a reformulação de condutas, ora sugere um mover-se de
defesa e destituição discursiva, ora é crítica sem trégua ao descompasso, à
desordem do mundo-fêmea em constante reformação. Não há espaço para nostalgia,
nem para a utopia, o fim-em-si do poema propõe um mundo outro, de fendas
expostas, de novas relações, em que a poeta se apresenta numa pulsação corpórea
de dimensões escusas, pondo à voz o que foi silenciado, cerceado, cerzido,
obliterado por uma ordem unicista, unilateralista e inteiramente a serviço de
uma margem tida como superior às outras.
Pedro
Fernandes
editor
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