"um bom
poema, / por mais
belo que seja, tem de ser cruel"
Joan
Margarit
Lapidar
palavras. Não é esse apenas o trabalho do poeta. É lapidá-las e recolocá-las
em rotação. Porque palavras são, além de pedras, universos. Por isso mesmo, o
ofício do poeta está para o de deus. Cada poema engendra na sua maquinaria um
universo próprio e particular. Universo que se nutre da lama de onde emerge,
mas customiza-se, vinga (não todos) e constitui-se em atmosfera paralela a esse
real empírico que habitamos. Nesse estágio, o poema atua como sala de espelhos.
Mas dela extrai-se um itinerário palpável que não se perde no espaldar dos
reflexos. É esse itinerário o resultado de sua materialidade pétrea. As
palavras têm dimensão, peso, massa e volume. Não tivesse não seria possível
moldar esse universo particular do poema, como também se perderia o poema no
mover-se do refrata-reflete.
Foi-se então
o tempo em que o poema era flor. Delicado. Fechado. Olhando para sua maquinaria
e se enfeitando de balangandãs. Perfumado. Imaginação. Suspiro de iluminado na
torre de marfim. Medido à régua. De passo regrado. Espartilhado. Povoado de
donzelas. De palavras castas, virgens. Esse estágio há muito que se perdeu. O
poema não é mais universo apartado. Deixou as alturas. Incorporou as dores do
mundo sem se perder nelas. Incorporou as decisões do seu criador e fez-se
denúncia. Gotejar perfurante.
O universo
próprio que se cria do mundo faz o poema movimento. Perdeu-se também, logo, o
estágio de paralisia. Poema travelling. Há nisso tudo, ainda, o poema
antropófago. Alimentando-se da maquinaria dos balangandãs e fazendo-se
maquinaria simples. Absorvendo o eco dos antepassados e fazendo-se novo eco.
Não muitas vezes (constantemente) invadido por outras tessituras
verbivocovisuais. Nascendo, ora do ponto morto, da materialidade esvaziada
(quase) de poesia. Ora fazendo-se por metástase: de uma palavra princípio do
mundo, um novelo infinito. De tons destoantes. Estonteante. De toadas.
Mas (alerta)
nem tudo é matéria de poema. Poetas de brinquedo quebram-se. Não resistem à
pancada firme da palavra. Palavra pedra. Objeto de duas faces. As duas
cortantes. O trabalho com a palavra é, pois, coisa de gente séria. Não há aqui
espaço para os aluados, os tomados de inspiração. O poema é espaço de labuta.
Constante. Exige do poeta a persistência, a audácia, o suor, o êxtase, o
sangue.
Nesse
estágio novo do poema, vejam bem, foi que encontrei com uma poeta potiguar de
produção significativa. E digo o porquê. Porque tem na palavra a seriedade. E
consegue, como poucos, reinstalar esses organismos, nem sempre em atmosferas aconchegantes,
mas suficientemente capazes de fundir-se em universos próprios cuja emoção (do
eu que canta) e a razão (do eu que fabrica o canto) mantém-se em equilíbrio.
Cada obra dela é como um andar por sobre uma cerca de farpados. Talvez essa
seja a metáfora mais concreta para entender o desafio de, primeiro, entender a
sua construção poética e, segundo, ler seus poemas. Do modernismo, ela não
herda a metástase. Herda a concisão. Mamediana, como parece caminhar todos os
grandes poetas que vem depois de Zila e faz da poeta uma fonte. Por conseguinte
ela incorpora-se no rol cabralino; não somente pela seriedade com a palavra,
mas pelo zelo com que remonta e constrói seus universos.
A concisão
dessa poeta nasce no nome pelo qual se designa. Como o nome daquela portuguesa,
poeta no registro, a poeta potiguar Diva Cunha – é este o nome e é dela a obra,
ambos, nome e obra homenageados nessa edição do caderno-revista – reúne no
primeiro nome a dubiedade da palavra poética. Faz-se diva, de divino (?), de
deusa a remoldurar universos. Diva não usa apenas do trabalho físico das mãos
para compor. Sua poética é fabricada com os laivos do corpo e daí a palavra em
Diva é também corporeidade. E o poema sistema. Logo o universo que ela
remoldura é muito particular. E tão próprio que parece inútil procurar
correntes em que filiar a escritora. Particular, mas plural. Se o corpo todo
tateia a moldura do poema, os temas sobre os quais se sustentam são
diversificados. Como deve ser o poema nesse novo cenário da palavra.
A palavra de
Diva é ousada. Desvirgina formas femininas. É cúmplice com aquilo que diz.
Coloca a tessitura do desejo na fenda da palavra. E tudo se ilumina no gozo
louco, hemorrágico. Entendem os dois limites que a palavra da poeta alcança? É
a concisão que se perde no despejar de sentidos. A palavra em Diva parece está
sempre grávida. Cheia por todos os lados. E de uma elegância única.
Pedro
Fernandes
editor
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