SOBREVIDA PELA PALAVRA

A vida são instantes. E os instantes são vãos. Só a palavra é sobrevida. Mesmo se esquecida, fatalidade da qual talvez o único ileso seja o tempo; silenciada, destino dado àqueles para quem a palavra é mero exercício pragmático ou quem é calado pelo poder.

A palavra é ainda nossa única eternidade. Foi, na impossibilidade de precisar o eterno, a cápsula que trouxe vivos quem nunca conhecemos. E revelará para o futuro quem fomos. A eternidade é um reverberar contínuo de palavras. Não à toa, a palavra foi tornada objeto de culto. Quem é deus, se não uma palavra? E a existência, se não o que se nomeia? A palavra é o princípio, o meio e o fim.

A compreensão da palavra como criadora do visível, finito, e do invisível, infinito, é a raiz da poesia. Há no poeta a contínua tarefa de refundação do mundo. Ora pela distensão da palavra em uso, ora pela renovação da língua pela palavra nova. No primeiro caso é, mesmo que recriação, criação, uma vez não ser o ato recriativo uma ressurreição. A ressurreição não é o nascimento do mesmo. Tudo só vive uma vez. Exceto a palavra, que se renasce e alcança os opostos noutras vidas.

Assim, quando acusam o poeta de sua poesia se refugiar no trivial é, por vezes, contra a possibilidade criativa – e o logo o ser da poesia – que se colocam. Porque não é a trivialidade aquilo que permanece no poema mas sua expansão. O que se expressa. E isso precisou que o poeta alcançasse outra compreensão sobre a efemeridade a fim de percebê-la como possibilidade poética. Ao mesmo tempo, esta não é uma percepção fortuita. Nem totalmente nova – coisa do acaso. Nem gratuita, levada em causa pelo império do trivial e do efêmero, expandido da aurora da modernidade ao contemporâneo. É a reafirmação do que sempre se percebeu enquanto força, pulso da natureza. Que o material da poesia é a existência. Se assim, a poesia está em toda parte. E o poeta é o demiurgo. 

Por exemplo, o ponto no qual se insere Ana Cristina Cesar, o dos poetas que lidam com o uso coloquial da linguagem e se apropriam na sua obra de palavras corriqueiras, dos seus usos pragmáticos, do seu cotidiano – afirmativa que, se se adéqua ao estatuto do efêmero aqui em destaque, se distancia o suficiente, no limite de ser chamado de contradição, se lembrarmos que esses poemas podem, agora distantes desses usos e do cotidiano da linguagem, constituir o sentido sempiterno esperado da poesia. Historicamente é inegável o distanciamento do presente tomado como feitura do poema. Mas, o caso percebido então, é que, tomado pelo poema, qualquer efemeridade é logo tornada distância. 

O trabalho de preocupação pela desvinculação do datado – daquilo que o próprio Carlos Drummond de Andrade, um dos nomes pertencentes daquele eixo central do modernismo e situado entre os revolucionários do gesto poético na literatura brasileira, isto é, base para o que tem sido trabalhado pelos poetas de depois – não é uma tarefa atribuída ao leitor mas ao poeta; convencionalmente, são raros os leitores presos à necessidade de vincular o conteúdo do poema a determinado contexto. E essa proximidade é só ilusão para o poeta. Para o leitor, pura miragem. Aos leitores mais acurados nunca lhe restará outra alternativa se não a de, no trato de deslindamento do poema, oferecer a mais diversa sorte de possibilidades de leitura a fim de demonstrar o trabalho de significação construído, direta ou indiretamente, pelo poeta. Isso significa dizer que, a depender da maneira como se verifica o contexto pela obra poética, retomá-lo não é atribuir-lhe uma força atrasada e sem valia para o leitor contemporâneo, tampouco atualizá-la, mas tratá-la como um enriquecimento no processo de leitura do poema. O poema é rio de linguagem e arrasta sedimentos do tempo. Em passagem, esses sedimentos são o mesmo-outros. Ler poesia vestida de efemeridades é encontrar a pele deixada pela palavra no passado e como se recria depois. Um mover-se sempre em distensão.

A efemeridade que une Ana C. aos poetas de seu tempo e depois dele assume-se como uma frente de significação diversa: se manifesta ora na estrutura e forma do poema, quando encontramos a força epifânica do verso curto, a estrofe breve ou poema-pílula e a linguagem quase sempre despida do trabalho de garimpo, a anotação do que lhe vem num instante de epifania; ora no tema, nas situações evocadas que se referem ao dia comum, do que vê e vivencia o eu-poeta; ou na maneira como o poema é apreciado pelo leitor. Isto é, não estamos ante qualquer força que lhe implique uma necessária reflexão porque o efêmero, o epifânico, é revelação e não inspiração. O poema é instante.

É por isso que o renascimento, por assim dizer, da sua obra encontra terreno muito fértil na atualidade. Porque, do tempo dela para o nosso, o efêmero é cada vez um modus vivendi; já não é a da atitude de reflexão contemplativa. Estamos definitivamente na era dos insight – naquilo que, se para o bem ou para mal ainda não sabemos, tem se assumido na poesia com grande força expressiva, ainda que o poema-trocadilho e o poema-piada, por exemplo, signos da aurora desse tempo, sejam uma alternativa cada vez mais previsível e logo um fenômeno cansado, que serviu a um tempo mas agora talvez devêssemos usar essa força para galgar outras expressões poéticas; de toda maneira, as novas gerações têm em poéticas como a de Ana o impulso para se reinventarem. Herdeiros na poesia são aqueles capazes de subverter o que seus antepassados disseram e fizeram. O trabalho de poetas como Ana C. foi sempre o de desconstruir descontraidamente a sisudez da poesia e de quem faz o verso.

Isso responde perfeitamente as acusações de que a poesia de poetas como Ana Cristina sobrevivem mais ao culto do poeta torturado, atormentado e suicida. A poesia dessa poeta encontra fôlego dentro e fora de seu tempo. É catapulta para o futuro. Prevalece a sobrevida da palavra que, por sua vez, é a sobrevida do poeta. Não o contrário como os detratores costumam pensar.


Pedro Fernandes
editor

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